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Crítica | 7 Prisioneiros

O choque entre ética e sobrevivência.

por Kevin Rick
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De certa forma, 7 Prisioneiros parece dois tipos de filme. Ou melhor, duas linhas narrativas, que até se complementam, mas que criam diferentes experiências ao longo da história sobre escravidão vendida como oportunidade de avanço econômico na sociedade contemporânea. O cineasta Alexandre Moratto abre o filme com um jantar feliz em família na zona rural do Brasil. Mateus (Christian Malheiros) está saindo de casa em busca de uma oportunidade de trabalho em São Paulo. Na manhã seguinte, ele pula em uma van com outros jovens, e durante a viagem eles conversam sobre seus sonhos e objetivos. Infelizmente, eles acabam encarando uma dura realidade quando chegam na sucata decadente chefiada por Luca (Rodrigo Santoro), onde o chefe duro priva os jovens de liberdade e condições básicas de vida.

Esse primeiro ato tem o intuito de evidenciar situações sociais brasileiras dentro do gênero de thriller. Moratto contextualiza muito bem um olhar de ingenuidade da saída do interior para a capital, desde a simplicidade dos diálogos de Mateus e companhia, como rir sobre comprar perfume ou dos sonhos modestos de cada um, até o certo nível de ignorância do grupo por causa da falta de oportunidade de estudo na vida do campo. Aprendemos que a maioria deles não sabe ler, um nem sabe sua idade e nunca antes dormiu em uma cama. Existe uma pureza e a formação de uma irmandade entre os jovens que tanto analisa uma circunstância de pobreza comum no Brasil quanto cria uma identificação terna com os personagens quando eles se veem na trágica situação de cárcere.

Moratto também tem um cuidado com o ambiente. O cineasta brasileiro captura desde o início a desconexão entre o interior e a capital. O campo é tranquilo, brando e familiar, mas de certa forma vazio, enquanto o horizonte de São Paulo com seus arranha-céus e vida capitalista é brilhante, moderno e gigantesco, cheio de chances infinitas, mas tremendamente frio e hostil com suas cores metálicas e texturas não naturais. Existe uma espécie de sensação de prisão e sufocamento na capital, como se os jovens estivessem sendo engolidos pelo ambiente em contraste com a vasta liberdade do campo. É uma introdução visual carregada para o ferro-velho, com o arame farpado revestindo as paredes, o enorme portão de metal que só é aberto com chaves, o lixo não-natural em cada canto do local e a “porta” do quarto dos jovens que parece grades prisionais.

É um choque de realidade. Um que muitas pessoas simples que saem do interior com o sonho da oportunidade acabam tendo quando se deparam com a exploração de relações trabalhistas do sistema capitalista. Claro que aqui é levado ao extremo com a escravidão, fazendo um jogo entre temas universais e brasileiros, mas Morratto se comunica narrativamente muito bem entre evidenciar o trabalho escravo contemporâneo (que existe no Brasil aos montes, apesar de pouco noticiado) e também dialogar sobre a mudança do interior que não é tão generosa quanto a ingenuidade do campo possa pensar.

Assim, Moratto consegue colocar seu discurso em foco, mas dinamizado dentro do gênero de thriller, com o grupo se juntando e tentando escapar do sinistro Luca, interpretado por um Rodrigo Santoro inspiradíssimo. Caracterizado com uma aparência suja e desleixada, jogo corporal solto e com uma personalidade narcisista e manipulativa grosseira, Santoro encarna um tremendo opressor. O antagonista, junto do ambiente, criam a narrativa do grupo lutando contra o sistema para escapar. As tentativas de fuga são pontuadas por momentos pessoais do grupo, os conflitos entre si e questões familiares que continuam o desenvolvimento do início do filme para dar mais uma camada de substância à trama bem cadenciada de suspense.

E, então, o filme revira totalmente em estilo e tom. À medida que a narrativa avança, o texto de Moratto e Thayná Mantesso vão se esquecendo do thriller para dar enfoque em um estudo de personagem de Mateus e Luca. Enquanto os dois homens circulam cautelosamente em torno um do outro, sua animosidade se transforma em uma forma de respeito invejoso e lealdade involuntária. O filme decide adotar um caminho de dilemas morais e éticos em uma história complexa sobre hierarquia de poder e cadeia produtiva, da vítima coagida a se tornar um vitimizador para sobrevivência (e posteriormente dinheiro) e sobre um sistema que engole aqueles na parte de baixo da pirâmide social.

Eu gosto de ambos os atos, mas tenho vários problemas em como a mudança é feita e o que resulta dela em termos de desenvolvimento para o que é proposto no começo do longa. Primeiro que há um grande descarte do relacionamento grupal e das questões familiares do grupo principal, algo que me incomoda em termos de resolução para toda a construção de irmandade e paralelo do interior com a capital, mas que entendo da perspectiva de culpa para Mateus, com o roteiro sempre cutucando a índole do protagonista com seus amigos. Mas a total negligência do enredo de fuga e do filme de gênero é um ponto negativo crucial do filme para mim, pois, de certa forma, é um abandono gigantesco de toda a experiência cuidadosamente criada, desde o sentimento de enclausuramento do ferro-velho, do medo à espreita de Luca (que vira um personagem estranhamente simpatizado) e do próprio suspense. Se perde toda uma atmosfera e encadeamento de thriller.

Outro ponto negativo é o retrato político e policial de Moratto, trabalhando o papel do Estado de maneira extremamente rasa e distante de uma visão autêntica das influências do topo, do abuso e da corrupção. Muita coisa é jogada em tela para dar algum senso de explicação para como Luca tem tanto poder e da conexão de um sistema sujo (particularmente acho bem pobre os momentos sobre tráfico humano), mas sem um cuidado narrativo e dramatúrgico para indicar todos esses facilitadores e membros de um corpo social cruel.

Ainda com problemas, 7 Prisioneiros nos apresenta uma obra com dois atos bem distintos em termos de linguagem cinematográfica, mas igualmente intrigantes e complexos. Apesar de se completarem tematicamente, não acho que eles combinam narrativamente, saindo de um suspense e de um thriller para um estudo de personagem duplo. Mas Moratto, junto do ótimo elenco, nos carrega por uma jornada inquieta e devastadora sobre liberdade, choque de realidade, ambiguidade e exploração. Um longa que começa como um thriller carregado de destruição da pureza e da evidenciação de mazelas sociais, 7 Prisioneiros termina como uma cruel reflexão da fragilidade da ética humana frente a um sistema inumano.

7 Prisioneiros – Brasil, 11 de novembro de 2021
Direção: Alexandre Moratto
Roteiro: Alexandre Moratto, Thayná Mantesso
Elenco: Christian Malheiros, Rodrigo Santoro, Bruno Rocha, Vitor Julian, Lucas Oranmian, Cecília Homem de Mello, Dirce Thomaz
Duração: 93 min.

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