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Crítica | A Alegre Divorciada

por César Barzine
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A mais banal das situações pode ser o grande pontapé para uma obra inventiva como A Alegre Divorciada, isso dentro de uma época em que a comédia conseguia partir de elementos improváveis sem cair no nonsense. Pelo contrário, filmes como este (principalmente os da década de 1930) conservam um elevado charme e carisma. Tal fator se deve principalmente ao timing e ao tom de ingenuidade que é marca registrada das produções da Era de Ouro de Hollywood, sendo uma estética inocente para certos trabalhos que, apesar da transparente leveza com que são apresentados, ainda fazem parte de um cinema adequado a adultos e que nunca rebaixa o bom senso do espectador.

Uma mulher chamada Mimi está com o seu vestido preso a uma mala. Esse é o grande fato que dá início ao plot da qual se desenrola a trama. Em um aeroporto de Paris, a moça clama pelos guardas, mas a única pessoa que a atende é um dançarino americano. A situação torna-se constrangedora: o vestido rasga, e a madame sai irritada. O homem se apaixona por ela, porém ela não o corresponde. Mas Guy, o dançarino, não desiste de Mimi, encarando o desafio de conquistá-la. Protagonizados por Fred Astaire e Gingers Rogers, os dois eram juntos as grandes estrelas dos musicais nos anos 1930 e 1940, compondo hoje, através da junção entre elegância e carisma, o imaginário de uma glamourosa Hollywood presa no passado. E é dessa lembrança de algo que não existiu aos nossos olhos que parte o encanto do filme: a ingenuidade em torno de uma simples história de amor regada a números musicais e danças que surgem do nada.

Mas o resultado desse dito filme simples não veio de modo tão acessível. Uma das principais características de Fred Astaire como profissional era o seu empenho nas gravações e ensaios, levando geralmente dez horas de exercícios diários para satisfazer o seu perfeccionismo. O fruto de todo esse esforço fica explícito na tela: números de dança completamente complexos e impressionantes. O primeiro deles, contextualizado dentro da trama – ou seja, não é como se fosse um “intervalo” na história -, mostra sapateados intensos e extremamente ágeis, como se as pernas de Astaire ganhassem vida própria. 

Tudo em A Alegre Divorciada passa por um espontâneo processo de roupagem que colore aquilo que poderia ter sido uma deficiência caso a obra fosse feita em outro contexto. O longa só funciona porque está localizado numa determinação específica da história do cinema: a Hollywood em seu período áureo. Desta forma, a simples história assume uma carga espirituosa; e a sua realização enfática (estamos falando de um musical) é nada menos do que imensamente simpática. Mesmo com um roteiro bem discreto, a trama sofre uma reformulação beirando a metade do longa. Mimi quer se divorciar, e Guy quer se relacionar com ela; o que poderia ser uma combinação bem cabível para eles, acaba se tornando um conflito que descamba em cômicas confusões. Esse fator demonstra ser tão expressivo graças ao fato de que o improvável é um dos elementos centrais da comédia por excelência; a inocência de se deixar levar pelas incoerências do destino – que são também maneirismos do roteiro – é o que faz de boa parte das comédias serem o que elas são.

Não é à toa que a frase responsável por toda essa confusão é “‘Acaso’ é um nome tolo para o destino”, já que essa citação vai além de ser um mero passo narrativo: é o sentido do filme por completo e do romance que vive os protagonistas. Contradições e momentos inusitados fluem sem questionamentos, pois esse é um caminho natural do destino. O que é completamente sintomático com o recurso necessário para o roteiro fechar o arco do casal – dando o ingresso para o divórcio de Mimi e a oportunidade de um casamento com Guy -, que é resolvido da forma mais inusitada possível. É quase que um deus ex-machina, mas que, de forma alguma, soa dissonante. 

Como já dito, existe todo um fluxo natural que faz com que as coisas andem na relação entre Guy e Mimi, mas essa naturalidade é justamente produzida por aquilo que não é aparentemente orgânico. A história abraça as situações inusitadas fazendo do incomum algo dentro da normalidade. Guy não tem nenhuma forma de contato com Mimi, e se deparar com ela em meio a gigante Paris seria algo totalmente improvável – mas mesmo assim isso acaba acontecendo. Do mesmo modo, o destino provoca uma outra situação que joga vários personagens em um tiroteio de cego. Vemos isso no terceiro ato em que um amigo de Guy contrata um sujeito para fingir ser o amante de Mimi e, ao haver uma provável descoberta por parte do atual marido dela (um geólogo), ela poderá ficar com Guy através de seu divórcio. Mas Mimi acaba estando com Guy na hora de se encontrar com o seu “novo amante”, desencadeando uma divertidíssima confusão do próprio ao procurá-la e, por causa disso, receber as mais desagradáveis reações das mulheres (e seus parceiros) com quem aborda através de um código de reconhecimento.

A balbúrdia persiste quando ele finalmente encontra Mimi em seu apartamento com Guy, mas graças a um empregado do hotel – que aqui, mais uma vez, funciona como uma peça-chave de coincidência para iniciar/fechar algum núcleo narrativo -, ao finalmente aparecer o marido de Mimi, uma grande revelação surge por parte desse mesmo funcionário. Diante da descrença e do deboche que o geólogo tem pela suposta traição de sua mulher, a insistência dele na recusa do divórcio acaba se mantendo. Isso até o instante em que o tal empregado – que, antes desse momento, tinha apenas uma pequena presença de efeito cômico -, acaba causando um “mini plot twist” que revela uma identidade oculta do geólogo, possibilitando finalmente o divórcio. O fechamento desse arco – que também é uma das melhores cenas do filme – só ocorre graças a mais um uso dessa quebra de verossimilhança empregada pelo roteiro, que acaba sendo uma fonte de carisma a cada salto de surpresa que o espectador e os personagens presenciam.

Outro momento de grande destaque, mas desta vez não pelo humor, e sim pelo aspecto musical, é a sequência que carrega o último número musical de A Alegre Divorciada. A apresentação é um verdadeiro primor de dança, canto e decupagem. Tudo ocorrendo sob extensa duração e com enorme número de dançarinos agrupados em casais, produzindo uma deslumbrante orquestração em que aquela imensa quantidade de movimentos brilham aos olhos do espectador. Esse pequeno exército de pares românticos conduzidos com enorme agilidade fazem da sequência algo megalomaníaco e dotado de uma belíssima complexidade. Mas, obviamente, só há todo esse fascínio porque também existe um olhar técnico competente para acompanhar aqueles corpos dançantes. 

E como as danças são compostas por este enorme conjunto cheio de divisões, elas acabam sendo comandadas pelas múltiplas virtudes do trabalho de decupagem e montagem, que equilibram numa enorme fluidez planos longos com instantes de vários cortes rápidos em ordem sucessiva. Entre os planos longos preenchidos com extrema beleza há de se destacar o traveling percorrido na margem do espaço de dança, perto das mesas de jantar; e o zoom-in que captura diversos casais se beijando consecutivamente numa fila. A montagem – que já chamava a atenção em suas frequentes transições em fade-in e fade-out – obtém sucesso dentro da continuidade de cortes ágeis aplicados ao lado de enquadramentos que oscilam entre abertos (capturando corpos completos, mas de apenas um casal) e fechados (focando numa parte específica do corpo). O resultado são planos curtíssimos, causando quase que um “efeito epiléptico”. 

Por fim, é impossível não ser cativado pela longa música, que incorpora em seu refrão toda a força daquela multidão de pessoas ali presentes, dando uma impressão de magnitude e imensa empolgação. Ironicamente, o filme que tinha tirado tanto proveito de uma história tão simples chega em seu clímax através de uma sequência grandiloquente e nada discreta. Mas o que importa é o fato de que todo aquele clima mágico imposto logo no início da obra não apenas se conserva, como também é elevado – fazendo de A Alegre Divorciada o mais colorido dos filmes em preto e branco.

A Alegre Divorciada (The Gay Divorcee) – Estados Unidos, 1934
Direção: Mark Sandrich
Roteiro: Dwight Taylor (musical), Kenneth S. Webb, Samuel Hoffenstein, George Marion Jr., Dorothy Yost, Edward Kaufman, Robert Benchley, J. Hartley Manners
Elenco: Fred Astaire, Ginger Rogers, Alice Brady, Edward Everett Horton, Erik Rhodes, Eric Blore, Lillian Miles, Betty Grable
Duração: 107 minutos.

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