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Crítica | A Alma do Crupiê e O Homem Que Veio do Mar, de Agatha Christie

Relações pessoais e relações de classe.

por Luiz Santiago
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O presente compilado traz 2 contos do livro O Misterioso Mr. Quin, de Agatha Christie, publicado originalmente no Reino Unido em 1930. No Brasil, a coletânea já foi lançada pela Nova Fronteira, pela L&PM Pocket. Em 2022 (a edição mais recente em relação ao momento de escrita desta crítica, em maio de 2023), saiu pela Harper Collins Brasil.

Neste livro, Agatha Christie, brincou com figuras bastante caras a ela desde a sua infância: Arlequim, Pierrô e Colombina, fazendo joguinhos de mistério centrados na figura do Sr. Quin (que é uma alusão, claro, ao Arlequim). A versão que a autora resolveu personificar em seu livro é a da abordagem inglesa para o personagem, que surgiu na Commedia Dell’arte italiana do século XVI. Nesta versão, o Arlequim tem poderes mágicos e traz mudanças de cenário com um toque de comédia. Ele se veste de maneira peculiar e consegue manipular o jogo nos cenários onde surge. Além dele, outra figura de destaque é a do Sr. Satterthwaite, um observador arguto que adora bisbilhotar a vida alheia e fica impressionado quando encontra o Sr. Quin.

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A Alma do Crupiê

Em The Soul of the Croupier, o Sr. Satterthwaite está passando os primeiros meses do ano em Monte Carlo. Ele fica animado ao reencontrar a Condessa Czarnova, uma personalidade muito conhecida nos cassinos e hotéis do distrito. Ela é uma antiga amante do rei da Bósnia, que em algum tempo, quando ela era mais nova, a cobriu de joias caríssimas. Seu companheiro, na atualidade, é um jovem estadunidense do meio-oeste, Franklin Rudge, que está encantado com a mulher. Ele visita Mônaco com alguns outros amigos conterrâneos, e o maior destaque desse grupo vai para uma jovem que tem um grande interesse nele, Elizabeth Martin. Agatha Christie cria aqui um triângulo amoroso entre personagens pouco interessantes, com exceção das figurinhas carimbadas de O Misterioso Mr. Quin, o já citado Satterthwaite e, claro, Mr. Quin.

A Condessa Czarnova é retratada uma vamp, uma femme fatale orgulhosa que veste uma máscara social de grande riqueza, quando na verdade não está podendo nada. Mas isso só nos é revelado no final do conto, quando o crupiê é chamado para um jantar especial e começa uma narrativa sobre “um homem que não deu certo na vida“. É uma parte interessante do texto, por pelo menos dar algumas respostas e um pouco mais de substância a um personagem. Mas não é o bastante. Tudo parece muito batido, muito chato e sem grande propósito nessa trama. Não há, de fato, um mistério aqui, o que é ainda pior. A dúvida em questão está direcionada ao crupiê e à Condessa, antigos amantes, e tudo termina com um “ato de bondade” do homem, que acaba, de certa forma, levando à resolução de um outro problema aberto: o triângulo amoroso.

Após a revelação e o afastamento da Condessa (eu jurava que ela iria cometer suicídio), os jovens estadunidenses ficam juntos e os negócios inacabados entre o crupiê francês e a tal Condessa são deixados em elipse, para o leitor completar. Não é exatamente um final ruim, confesso, mas faz parte de uma história ruim em sua completude, então não há muito o que fazer.

  • Publicado no Volume XIX, Número 5 da revista pulp estadunidense Flynn’s Weekly, em 13 de novembro de 1926.

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O Homem Que Veio do Mar

Com ilustrações originais de Steven Spurrier, The Man From the Sea é um conto interessantíssimo, com uma elegância e delicadeza que não são típicas das histórias curtas de Agatha Christie. A obra, no entanto, traz um problema de percepção social muito grande, porque acaba normalizando, justificando e diminuindo o peso criminoso de um homem que espanca e tortura a esposa, dizendo com todas as letras que ele “estava fazendo aquilo por amor“, porque “no íntimo, amava a esposa“. Uma classificação podre, em todos os sentidos. O importante é que essa horrenda colocação da autora vem apenas no final da trama e não interfere essencialmente em nada do que foi construído antes, de modo que o seu peso como componente do enredo não existe, pois não é em cima dele que o conto se ergue. Mas é impossível não se irritar quando lemos essa justificativa de aparição de Mr. Quin na história, como tendo sido “enviado por alguém do outro lado da vida“, justamente o abusador, torturador e espancador da mulher.

Estamos em uma ilha espanhola, onde o Sr.  Satterthwaite está passando suas férias (me pergunto do quê, já que ele é um herdeiro que não trabalha. Que delícia poder tirar férias das férias, não é mesmo?). Há uma cena tocante, bonita, trágica e lírica, tudo ao mesmo tempo, onde o nosso conhecido “observador da vida” nota um cão feliz que, em seguida, é atropelado. Uma reflexão profunda sobre a velhice e a brevidade da existência é colocada em cena, e confesso que eu não esperava nada disso nessa história. Agatha Christie sempre foi muito pragmática (nunca li os livros que ela escreveu como Mary Westmacott, então não sei de sua abordagem mais delicada nessas obras), mas aqui ela dá vazão a um outro estilo e construção que me encantaram.

Da cena inicial do conto, partimos para uma trama humana que fará as devidas relações simbólicas com o cão atropelado, tornando essa história um belo melodrama que, à parte a normalização da violência contra a mulher, é maravilhoso de acompanhar. Eu fiquei esperando o momento em que Mr. Quin iria entrar em cena, o momento de encontro dele com Satterthwaite, o que iria acontecer com o homem desenganado pelos médicos e com a mulher isolada, vivendo em um casarão colonial à beira do mar. Daria um curta-metragem visualmente muito bonito, isso aqui. Me deixou impressionado.

  • Publicado no Volume I, Número 6 da Britannia and Eve (Reino Unido) em Outubro de 1929.

O Misterioso Mr. Quin (The Mysterious Mr Quin) — Reino Unido, 14 de abril de 1930
Autora: Agatha Christie
Edição original: William Collins & Sons
Edição lida para esta crítica: Harper Collins Brasil, 2022
Tradução: Samir Machado de Machado
Arte da capa original: Thomas Derrick
290 páginas

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