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Crítica | A Aranha-Negra, de Jeremias Gotthelf

por Leonardo Campos
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Chamamos de ominoso tudo aquilo que traz mau agouro, tons funestos e nefastos, somado pelo ideal indesejado por qualquer um: a infelicidade. A Aranha-Negra, de Jeremias Gotthelf, é um romance dentro desta linha. Intensa, apavorante e atmosférica, a edição de 2017 da Editora 34, traduzida por Marcus Vinícius Mazzari, Mestre em Literatura Alemã pela USP, responsável por impregnar a publicação de rigor nas notas de rodapé e textos complementares, pode ser considerada a versão ideal para o leitor. Com projeto de capa idealizado pela Bracher & Malta Produções Gráficas, as 168 páginas do livro são encobertas por um invólucro já bastante eficiente neste estabelecimento de “clima”, pois a xilogravura de Bruno Gentinetta, de 1966, consegue expressar por meio da tradução intersemiótica, o conteúdo do texto estruturado pelo escritor suíço, eficiente ao fazer uso de lendas medievais, ilações bíblicas e narrativa ao estilo de As Mil e Uma Noites e Decamerão, contos populares árabes e conjunto de novelas de Giovani Boccaccio, respectivamente, para contar a sua história sobre a chegada de uma entidade demoníaca, transfigurada por meio de uma aterrorizante alegoria aracnídea.

Antes de investir na figura do escritor, faremos uma breve excursão pelo conteúdo do livro, combinado? Na obra, como mencionado, temos lendas do medievo, erudição bíblica, aspectos da cultura popular e outras modalidades narrativas deste escritor ovacionado por grandes nomes da crítica e da literatura ocidental, tais como Otto Maria Carpeaux e Thomas Mann, “sumidades” que o compararam ao nível de Homero e o classificaram como literatura para se localizar no centro do cânone. Nos desdobramentos de A Aranha-Negra, temos um avô que narra para a sua família, durante um batizado, a assustadora história de um aracnídeo que aterroriza e dizima uma região que ousa quebrar um pacto realizado com a figura do diabo. Ao remontar o que é narrado aos séculos XIII e XV, Jeremias Gotthelf utiliza as técnicas orientais conhecidas pelo relato de Xerazade, a mulher supostamente infiel que precisa manter a sua vida ao contar histórias diárias para o marido, um rei que não confia mais na fidelidade de suas esposas, aniquiladas cotidianamente. Ao manter a curiosidade deste homem, a jovem consegue garantir a sua sobrevida com o “maravilhar” oriundo da sua técnica de narrar, tal como Gotthelf faz conosco no livro em questão, um merecido clássico que deveria ser ainda mais conhecido e estudado.

Para compreendermos ainda melhor A Aranha-Negra, torna-se relevante conhecer o seu autor, Jeremias Gotthelf, pseudônimo literário do pastor Albert Bitzius, homem que viveu entre 1797 e 1854, grande conhecedor dos estudos bíblicos, explicação para como utiliza estratégias das escrituras para impregnar de moralismo e religiosidade a sua eficiente história ominosa sobre a transfiguração do mal na imagem de uma aranha. Com escrita arraigada em sua trajetória de vida rural, Gotthelf traz no romance, algumas correspondências com outra obra, publicada em 1819, assinada por August Ernst Langbein, trama também voltada ao banimento de uma entidade maligna no interior de uma peça de madeira. Na história, também há uma aranha negra a atormentar os personagens incautos, sob forte presença sobrenatural a gravitar em torno de suas vidas. Mais uma vez, os aracnídeos são responsáveis por deixar muita gente arrepiada, haja vista o atavismo dos seres humanos com estas criaturas de oito patas, conhecidas por seu estilo predatório, presentes constantemente na cultura popular, por meio de narrativas sempre peculiares que utilizam a sua imagem para a construção de enredos assustadoras.

Durante a narrativa do avô, sabemos que o diabo luta para impedir a condução do batizado de uma criança. O foco do maligno é toma-la para tornar o pacto quebrado uma ação efetiva. O período retratado na narrativa dentro da narrativa é uma época de muitas superstições medievais, códigos religiosos duramente praticados com rigidez angustiante, ilustrados por repreensões que envolviam até mesmo sacrifícios humanos. A aranha, alegoria representativa das epidemias da época, encontra-se presa numa viga de madeira, local onde foi aprisionada depois de um embate entre as forças do bem e do mal. É uma superfície que pode permitir a qualquer momento o seu retorno, possibilidade que enche os corações dos ouvintes da história de batimentos cerceados pelo medo, horror diante da narrativa que expressa a presença dos aracnídeos de maneira metafórica, mas sem sutilezas, monstros sombrios que se manifestam inicialmente pequenos e parecem se desdobrar de uma entidade única e apavorante, “o diabo”, aqui apresentado sob a denominação de “Verde”, figura próxima da errante Cristina, uma jovem que abre as brechas para a manifestação demoníaca que é tributária ao famoso pacto fáustico, narrado brilhantemente por Goethe.

Em A Aranha-Negra, Jeremias Gotthelf traça para os seus leitores uma mescla de tendências literárias, um panorama de questões patriarcais e ainda flerta com o paganismo e a imagem da mulher, observada na obra como uma espécie de Eva daqueles tempos, o equivalente ao arquétipo, salvaguardadas as devidas proporções, da femme fatale noir, neo-noir e contemporânea. É a criatura descuidada, responsável por atrair o mal diante da falta de modos, de um comportamento que foge dos rígidos padrões da época em que a obra foi publicada. O seu beijo selado com o mal colocou não apenas a sua vida em risco, mas a todos os que conviviam nas proximidades e mantinha alguma relação. É uma discussão que abre precedentes para leituras atualizadas, algo a ser realizado com parcimônia e adequação no que tange aos processos de observação diacrônicos, tendo em vista reconhecer o tempo e lugar de fala do autor e os códigos que regiam a época para que a leitura deixe de lado os elementos sublimes da estética para um debate puramente panfletário. Ao tecer os nossos fios interpretativos durante a leitura crítica de A Aranha-Negra, precisamos ter a firmeza de uma teia aracnídea, possibilidade garantida com a formidável tradução do pesquisador Marcus Vinícius Mazzari, detalhista nos pormenores desta leitura espetacular.

A Aranha-Negra (Die Schwarze Spinne, Alemanha/Suiça, 1842)
Autor: Jeremias Gotthelf
Tradução: Marcus Vinicius Mazzari
Editora no Brasil: Editora 34
Páginas: 168

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