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Crítica | A Árvore dos Frutos Selvagens

A difícil tarefa de recriar a si mesmo.

por Fernando JG
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Jornadas de retorno nem sempre são fáceis. Principalmente quando a saída é idealizada demais. Engana-se quem pensa que voltar para algo já conhecido, para uma zona que deveria ser de conforto, é uma garantia de refrigério. Mas é que já sendo a ida uma tentativa de ruptura com esse lugar estabelecido, para o qual se retorna, a volta converte-se em infinita amargura e desilusão. O que posso dizer do longa-metragem de Nuri Bilge Ceylan (Era Uma Vez na Anatólia, 2011) é que ele é difícil de ser assistido e assimilado justamente pelas condições reflexivas que são geradas no interior do próprio filme, que tem numa fala de Murat Cemcir a grande ideia do argumento: “De quem os sonhos se tornam realidade?”. Proferida ao fim da película, a fala de um pai já vivido e experimentado – dita após os maiores sonhos de Sinan (Aydın Dogou Demirkol) serem triturados por uma vida que nunca é aquilo que sonhamos e queremos que ela seja – expõe uma verdade difícil de ser entendida durante os primeiros passos que conduzem a passagem da juventude para a vida adulta; e que por ser dita por um homem já maduro e velho, torna-se uma verdade ainda mais dolorida e verossímil. Este é o núcleo de A Árvore dos Frutos Selvagens

Recém formado na faculdade, Sinan, amante da literatura, empenha-se em publicar o seu primeiro livro. Volta para a casa dos seus pais após graduar-se, no entanto, a situação familiar não é a melhor de todas. Com um pai viciado em jogos e uma condição financeira nada favorável, Sinan se vê obrigado a lutar sempre contra a maré que tenta derrubá-lo a todo custo, seja pelas portas fechadas na rua, seja pelos problemas em casa. Concluir ou não o seu sonho torna-se apenas um detalhe perante o aprendizado maior de que a vida não nos espera como um presente, mas antes como um desafio que precisa ser superado todos os dias, e que por vezes será insuperável, nos fazendo deixar para trás aspirações construídas ao longo de toda uma existência. Refazer a si mesmo é o monstro de Sinan. 

A árvore de que faz referência o filme é uma pereira, que produz peras. É forte, com galhos troncudos, retorcidos e raízes profundas, podendo suportar temperaturas extremas. A metáfora utilizada pelo cineasta faz parte da composição do seu protagonista, que tem todas as características desta espécie. Com íntimas ligações com sua cultura, as raízes que o prendem parecem acompanhá-lo durante todo o seu percurso, mesmo que tente rompê-las por não se encaixar dentro deste regionalismo tão enxuto que é o vilarejo de onde vem. Suportar e insistir em seus ideais não são o suficiente para que eles se concretizem de maneira plena e por isso desilusional ao extremo. 

O longa tem um ritmo muito singular e que está ligado à proposta fílmica. Para o objetivo da película, que é desenvolver plenamente o desejo e a quebra desse desejo, o cineasta vê a necessidade de dilatar a estrutura do enredo para acompanhar a busca incessante de seu herói. O filme nos cansa porque o seu personagem também está cansado de tentar. Ele roda, roda, roda e nunca chega a lugar nenhum, assim como o filme muitas das vezes. É cíclico, portanto, porque é cíclica a trajetória de Sinan e o longa assim o acompanha. É fundamentalmente necessário que o enredo dilate desta maneira a minutagem porque é preciso mostrar que ele tentou, mesmo que a tentativa se transforme em nada. Com isso, o diretor fratura lentamente o seu protagonista, machucando a ele e a nós a cada ato concluído. E concluído com desengano. 

O filme nos leva a ver o pai como um antagonista ferrenho durante todo o longa, não entendemos as suas motivações até que o final do enredo chegue e nos é entregue um momento de intimidade entre um pai e um filho que travaram conflitos dolorosos durante toda a fábula fílmica. Nos é exposto, enfim, que o pai também é um sujeito fraturado, como agora o é o seu filho, levando-nos a uma espécie de apogeu da decepção. Pai e filho, outrora tão diferentes e antagonistas em suas motivações, evidenciam-se tão próximos quanto ao núcleo humano sobre sonhos devastadoramente destruídos. A distância objetal entre eles, estabelecida ao longo de 170 minutos de tela, é rompida por um momento e o fim os concilia não pelo final feliz, mas pelo desencanto em comum entre dois homens: um já na terceira idade, outro que está passando pelo primeiro grande revés de sua vida, e que não será o último. 

As imagens de Tróia e do cavalo de Tróia são lindas demais e a direção de arte é brilhante em todos os aspectos. Com uma fotografia límpida e bem iluminada, o filme causa um deleite pelas paisagens solitárias e outonais que o caracterizam, dando o tom necessário que o enredo necessita. O personagem vagaroso, com inúmeros pensamentos, que caminha sempre de cabeça baixa, transforma-se no objeto central para esta espécie de paisagem que mostra uma Turquia poética e melancólica para um espectador que, de certo, não havia se preparado para a densidade total que o filme carrega. 

Do ponto de vista da necessidade, alguns aspectos não são bem-vindos. A minutagem é evidentemente bem trabalhada, mas há três eixos dialógicos que dilatam esse tempo fílmico. Contudo, pelo próprio curso das ações do enredo, muitos deles poderiam ser reduzidos sem prejuízo algum para as reflexões filosóficas que o filme exige, e que são necessárias e ricas no todo que compõem a estilística da película. Rever os três grandes diálogos do filme o tornaria ideal e conciso na medida certa, sem perder a potência especulativa que as observações filosóficas propõe a respeito da vida, da morte e da metafísica.

A Árvore dos Frutos Selvagens é uma grande produção, que, não tentando agradar de maneira alguma os circuitos comerciais, pensa o filme como uma entidade autônoma, capaz de gerar reflexões de cunho universal. Nuri Bilge Ceylan trabalha num roteiro implacável e delicado, indo além de seu assunto principal e extravasando com muito rigor, cuidado e sobretudo sem medo de colocar em cena um personagem absolutamente humano em seus fracassos, de modo que a desilusão nos atinge em cheio, nos fazendo experimentar o seu ressentimento, gerando uma comoção como efeito final da película.

A Árvore dos Frutos Selvagens (Ahlat Ağacı, Alemanha, Bulgária, Bósnia e Herzegovina, França, Macedônia, Suécia, Turquia, 2018)
Direção: Nuri Bilge Ceylan
Roteiro: Akin Aksu, Ebru Ceylan, Nuri Bilge Ceylan
Elenco: Aydın Dogou Demirkol, Murat Cemcir, Bennu Eildirimlar, Hazar Erguçlu, Serkan Keskin, Tamer Levent, Akın Aksu, Ahmet Rifat Sungar, Kubilay Tuncer, Öner Erkan, Ozay Fecht, Kadir Çermik, Ercument Balakoglu, Sencar Sagdiç , Asena Keskinci
Duração: 188 min. 

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