Utilizando-se de um universo onde mitos cristãos se entrelaçam com elementos de outras tradições espirituais, A Batalha do Apocalipse, de Eduardo Spohr, reimagina o fim dos tempos sob a perspectiva de Ablon, um querubim renegado cuja trajetória pela Terra revela tanto a fragilidade quanto a força da condição humana. A obra se vale de uma premissa audaciosa: o Armagedom não é apenas o clímax de uma profecia bíblica, é um evento orquestrado por interesses celestiais complexos, com motivações que vão além do bem e do mal. A habilidade do autor em tecer uma fantasia que conecta eventos históricos a confrontos sobrenaturais dá à trama uma profundidade que faz o leitor repensar as dicotomias tradicionais de luz e trevas/bem e mau; enquanto acompanha a vida de um anjo que se torna (paradoxalmente) mais humano ao abraçar as imperfeições terrenas.
O autor utiliza as memórias de Ablon como fio condutor de boa parte do enredo, permitindo uma imersão em cenários que passam pela Mesopotâmia, China, Palestina, Império Romano, Império Bizantino, Inglaterra e chegam ao Rio de Janeiro e Portugal contemporâneos. Essas passagens servem como pano de fundo para explorar a natureza dos seres celestiais em suas missões e interações com a humanidade. A relação entre Ablon e Shamira, a feiticeira de En-Dor, é um dos pilares emocionais mais legais do volume, desenvolvido com cuidado para revelar camadas de amizade, amor, lealdade, compreensão e sacrifício. Shamira, com sua sabedoria mística e conexão com o mundo espiritual, enriquece o texto ao oferecer uma perspectiva feminina poderosa, desafiando muitas convenções de papéis secundários frequentemente atribuídos a figuras femininas em epopeias fantásticas. Através dela, o autor examina o cruzamento entre magia, mortalidade e resistência, trazendo momentos de genuína conexão entre seres diferentes, mesmo em seus trechos mais densos.
Com uma escrita acessível, fluída, na maior parte do tempo, e muito ancorada em referências internas, Eduardo Spohr cria um cosmos onde anjos e demônios agem sob lógicas políticas, diplomáticas e éticas, muito similar aos humanos, inclusive nas pitadas de vingança. A trama desvenda a conspiração entre Miguel e Lúcifer, revelando como suas ambições divinas manipulam o destino do universo desde a dispersão de Javé em energia vital por todo o Universo (esse tema da “ausência de Deus“, guardadas as proporções, me fez lembrar de Preacher). Essa abordagem permite uma leitura que questiona a rigidez da “mitologia cristã oficial”, sugerindo que o poder, mesmo entre celestiais, é negociado por meio de alianças frágeis, sede de conexão e traições ou alianças calculadas. A inclusão de artefatos místicos, como a Roda do Tempo e o Livro da Vida, cria uma camada de simbolismo que versa sobre destino, livre-arbítrio (ou a ausência dele) e a natureza da criação, mas sem cair no terreno do previsível.
Infelizmente, a interação entre culturas e crenças diversas, algo muito importante para mostrar as complexas dimensões espirituais presentes no livro, embora bem-intencionada, revela um buraco conceitual. Não temos uma representação mais ampla de tradições como o Islamismo ou as cosmologias africanas e nativo-americanas, por exemplo. Essa omissão limita o alcance da óbvia ambição multicultural pretendida pelo autor (que teve até tempo para escrever uma longa sequência com fadas e gnomos, então não venham me falar que Islamismo e cosmologia africana e nativo-americana seriam “demais” aqui!), deixando uma sensação de oportunidade perdida e rejeição problemática em um projeto que dialoga com a diversidade espiritual da humanidade. É um ponto fraco do livro em termos de concepção, e não é como se o autor não tivesse tido espaço para fazê-lo, não é mesmo?
Todas as sequências de flashback, aqui, me agradaram muitíssimo, tanto pela força dramática e de entretenimento da narrativa, quanto pela forma como ela molda a transformação de Ablon em um símbolo de resistência humana e celeste. Suas interações com figuras como Flor do Leste, Tales e Pólix, embora breves, ilustram a capacidade da humanidade de ensinar resiliência e empatia mesmo a um ser imortal. A construção dos personagens secundários, como Gabriel e Orion, adiciona nuances a essa nova orientação moral, especialmente nos capítulos finais, quando o texto começa a apresentar os seus maiores problemas. A intensidade dramática de 70% do livro é tão rica em detalhes e conflitos, que o que vem depois, mesmo sendo teoricamente mais importante, parece cair num poço de anticlímax. A morte de personagens centrais, como Apollyon, mantém um peso narrativo significativo, mas outras perdas, incluindo Shamira e Lúcifer, carecem da grandiosidade esperada para a morte desses personagens. A resolução da trama, embora coerente, deixa questões em aberto sobre o equilíbrio cósmico, especialmente pela ausência de uma força antagônica estabelecida no novo universo, o que, para mim, é frustrante, porque não valoriza a tensão inerente às dualidades mitológicas.
Instigante em sua capacidade de entrelaçar história, mitologias e filosofia, A Batalha do Apocalipse é um verdadeiro marco literário na fantasia brasileira, cheio de ousadia em reimaginar o fim dos tempos como um palco para escolhas humanas e celestiais totalmente fora das expectativas. A jornada de Ablon, culminando em sua resistência final na Sala dos Portais, não somente redefine o conceito de heroísmo, mas propõe uma meditação sobre o que significa ser livre em um cosmos regido por forças além da compreensão e com agendas nem sempre benevolentes. A decisão do protagonista em lançar o Livro da Vida ao mar, simbolizando a rejeição de um destino pré-escrito, é um convite a abraçar a incerteza como força criativa e parte da existência aqui na Terra. O livro, como uma ótima exploração da fragilidade e da potência do livre-arbítrio (inúmeras vezes questionado aqui), desafia a cada um de nós imaginar um universo onde o fim é apenas o prelúdio de um novo começo. Como sempre foi. E para sempre será, pelo visto…
A Batalha do Apocalipse (Brasil, 2010)
Autor: Eduardo Spohr
Arte da capa original: Stephan Stölting
Editora: Verus
588 páginas