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Crítica | A Bíblia Kingstone: O Princípio (Gênesis #1 a 6)

O primeiro grande arco de histórias da Bíblia.

por Luiz Santiago
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O Livro de Gênesis sempre foi o mais criticado, mais atacado, mais “conceitualmente problemático” da Bíblia, por motivos que vão do seu longevo tempo dramático — abordando da criação do Universo à morte de José — até os confrontos morais, éticos, científicos e até mesmo religiosos diante do que aparece em partes posteriores da Bíblia, especialmente no Novo Testamento. Trata-se de um livro de origens, a cosmogonia do judaísmo e do cristianismo. Se você teve a oportunidade de ler a obra-prima de Robert Crumb intitulada Gênesis, já se deparou com a fantástica frase do artista que diz “Eu não acho que “Gênesis” seja um lugar ideal para se procurar por moral e espiritualidade“. E isso se dá porque além de ser um documento histórico antigo, portanto, cheio de vícios sociais, culturais e comportamentais de sua época — foi escrito por Moisés em cerca de 1445 e 1405 a.C. (um período idêntico até o livro de Números e que basicamente reduz-se numa proximidade maior ao ano 1405 a.C. quando chegamos a Deuteronômio) — é também um livro que traz uma base de muitas outras civilizações.

Deixando um pouco de lado a provocação acertada de Crumb a respeito do livro, o propósito do Gênesis é claro: estabelecer a grandeza de Deus e de seu poder manifesto na criação de tudo o que existe, além dos primeiros pactos que ele fez com os homens pré e pós dilúvio. A cosmogonia apresentada pelo autor do livro não consegue costurar bem o lado plenamente espiritual e de fé com os elementos mitológicos e narrativos sumérios, acádios e até egípcios com as quais teve contato e que incorporou à obra para criar a visão desse único Deus (Javé/Eloim) aos quais o homem deve a sua “imagem e semelhança” — termo muitíssimo importante para um aspecto doutrinário posteriormente revisitado e amplamente comentado na Bíblia. Um leitor que conheça A Epopeia de Gilgámesh, o Enuma Elish ou a Epopeia de Atracasis (também grafado como Atrahasis, Atar-hasis ou Atram-hasis) conseguirá rapidamente identificar semelhanças entre as histórias. E o que isso significa, exatamente? Bem… que estamos falando de uma composição literária antiga, de um povo que tinha contato com muitos outros e, como era de praxe em literaturas mitológicas de qualquer povo/religião antigo, sempre havia a incorporação de elementos das histórias de seus vizinhos.

Até hoje eu não consigo entender o porquê de alguns cristãos ficarem estupefatos ou irados com algo histórica e literariamente tão simples. É como se a comprovadamente óbvia inspiração que Moisés trouxe de outras narrativas mitológicas da Mesopotâmia (principalmente) tirasse por completo a fé do indivíduo e inutilizasse a Bíblia. Em uma dessas hilárias negações, vi um teólogo, certo dia, procurando justificar que “a Bíblia jamais foi inspirada em nada” porque as narrativas politeístas da região do Levante e redondezas são muito grandes, e que tudo o que é derivado de uma fonte é obrigatoriamente mais épico, mais extenso, cheio de detalhes e de histórias ramificadas… Já o Gênesis é simples e objetivo, portanto, nunca poderia ser inspirado em nada. É até engraçado notar o desconhecimento dessas pessoas para aspectos literários e históricos relacionados à forma como se produziram narrativas na Antiguidade (um povo seminômade e um povo sedentário vão produzir tabuinhas de argila ou pergaminhos em diferentes números, já que um precisa levar esses documentos de um lugar para outro de tempos em tempos) e o contraste entre gêneros narrativos: as tramas cosmológicas de onde o autor do Gênesis buscou inspiração são poemas, enquanto a sua forma de escrever é por crônica, relato.

Adão e Eva são expulsos do Paraíso.

Isso sem contar que na História da Literatura, de Gilgamésh ao livro mais recente de um influenciador que escreve pior que um tomate, há um número quase pornográfico de exemplos de narrativas que são derivadas de algo, que são inspiradas em algo e que não são obrigatoriamente maiores que a obra que a inspirou. E agora, passado todo esse contexto, vamos falar um pouquinho da casa que produziu o presente volume. Fundada por Art Ayris (roteirista da história), a Kingstone Comics é uma casa editorial especializada em quadrinhos cristãos. A Bíblia Kingstone é definitivamente o seu mais famoso e importante projeto, pois adapta para a Nona Arte todas as narrativas do Antigo e do Novo Testamento. A editora também tem séries baseadas em elementos doutrinários do cristianismo e quadrinhos que expandem ou reimaginam algumas passagens bíblicas — ou seja, algo com mais elementos ficcionais, o que, na minha opinião, melhora a trama na maioria dos casos. Aqui, falaremos exclusivamente do primeiro arco, que abarca da Criação (Gênesis 1:1) até a decisão de Deus em destruir a humanidade e escolher Noé como o salvador de parte da criação (Gênesis 6:8).

A primeira coisa que devemos destacar é a qualidade do projeto. Não é de hoje que se produzem quadrinhos baseados na Bíblia ou com temas cristãos, mas convenhamos que qualidade não é o forte dessas publicações. Aqui na Bíblia Kingstone, a diagramação, a escolha dos artistas e a estrutura narrativa escolhida são feitas com o cuidado que encontramos em qualquer editoria profissional da área. Mesmo que a obra tenha problemas, eles não são de descuido. E isso faz toda a diferença. Como a Bíblia já é um livro bastante famoso e essas histórias do início do Gênesis são de amplo conhecimento da maior parte da população ocidental, o que chama a atenção de um eventual leitor é justamente a arte e a maneira como o artista interpreta esta ou aquela situação (vide os fantásticos trabalhos de Robert Crumb, no já citado Gênesis e de Niko Henrichon, em Noé) que vai tornar a adaptação verdadeiramente interessante.

Também entra na equação a intervenção do autor que, dependendo de como é feita, acrescenta um sabor especial à história. Em Gênesis, Crumb não fez isso. O texto bíblico ali é integral, mas interpretado de maneira estupenda através da arte do Mestre. Em Noé, o roteiro de Darren Aronofsky e Ari Handel faz uma leitura particular de alguns versículos em toda a narrativa do dilúvio, no que são igualmente acompanhados pela arte. Aqui em O Princípio, os desenhos de Danny Bulanadi são muito bons, especialmente quando trabalha com planos abertos. Já o texto de Art Ayris acrescenta alguns comentários no decorrer da narrativa que mais parecem lições de moral… em um texto que já possui elementos morais (relacionados à fé), de modo que parece algo forçado e até redundante. Dessas observações, achei interessante a colocação clara e aberta de que a serpente que enganou Eva era Lúcifer. Isso abre espaço para perguntas que o quadrinho não responde, como o por quê o capeta estava dentro do Paraíso (e se “foi Deus que permitiu isso“… tipo… wtf?) e quando, na cronologia da Criação, há a queda de Lúcifer. Se essa serpente do Éden era mesmo o diabo, então a rebelião dos anjos aconteceu em algum momento entre a criação da Terra e a queda do homem, certo? Porém… quando? Nada no Gênesis indica isso.

A fantástica transformação da Serpente.

 Apesar de ter uma boa arte, Bulanadi só tem um momento de verdadeira ousadia aqui, que é na representação da serpente. Não creio que isso tenha necessariamente a ver com o artista, pois deve ter sido uma exigência contratual da editora, mas a representação de muitos animais aqui poderia ser bem mais ousada, brincar com algumas semelhanças, buscar elementos paleontológicos para dar suporte visual às imagens. De todo modo, a representação da Serpente é impagável. A transformação pela qual ela passa, após condenação de Deus por ter tentado Eva (e se era realmente o diabo, é muito injusto que toda a espécie tenha sido condenada a perder as patas e a fala porque o próprio Deus permitiu que o Tinhoso entrasse no Paraíso e tentasse Eva…) é demonstrada pelos desenhos e tem um grande impacto sobre o leitor. Os outros quadros grandes da arte também chamam a atenção pela beleza, mas nenhum outro momento visual traz algo assim tão instigante.

A intervenção do roteirista para explicar como a população do mundo aumentou, após a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, é outro ponto que pode gerar muitos debates. Pelo menos ele não tentou inventar coisas absurdas para não dizer que havia sim incesto nesse momento, e que aparentemente era normal. Há até uma posição curiosa dele sobre o motivo pelo qual não existiam filhos com problemas genéticos vindos desse tipo de gestação, e uma adição sobre o momento em que Deus proibiu (na época de Moisés) o casamento entre parentes próximos.

Alternando observações do roteirista com versículos bíblicos, O Princípio conta de maneira muito interessante todo o primeiro grande arco de histórias da Bíblia. Para quem já conhece essas narrativas, o quadrinho adiciona alguns debates e certamente gerará críticas em relação à abordagem de Ayris para esses eventos, dependendo da fé ou do entendimento geral de cada leitor. É uma leitura muito rápida e que poderia se permitir expandir um pouco, observando aquilo que os versículos dizem (especialmente no final, que é uma coleção de momentos sobre a descendência de Adão e Eva), mas que nos leva de modo direto para a corrupção da população e o que geraria a ira de Deus para simplesmente acabar com tudo. O próximo volume é o de Noé. E para quem achou que as referências de outras culturas e os problemas interpretativos ou de discussão até mesmo científica haviam acabado… achou errado!

A Bíblia Kingstone: O Princípio (Kingstone: The Comic Bible – The Beginning) — EUA, 2021
Editora:
Kingstone Comics
Roteiro: Art A. Ayris
Arte: Danny Bulanadi
Arte-final: Danny Bulanadi
Cores: Joel Chua
Capa: Danny Bulanadi
Letras: Zach Matheny
Editoria: Kelly Ayris
30 páginas

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