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Crítica | A Cartomante e A Igreja do Diabo, de Machado de Assis

As cartas sobrenaturais do suspense e a organização do pecado.

por Davi Lima
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cartomante

Nesse compilado com duas críticas de dois contos do escritor brasileiro Machado de Assis, A Cartomante e A Igreja do Diabo se conversam quanto ao tema da fé e religião, além de se relacionarem pela data de publicação original em 1884, embora se encontraram posteriormente em coletâneas diferentes nas primeiras edições. Ambos são publicados atualmente no livro A Cartomante e Outros Contos, reunindo outros textos como: A Causa Secreta, O Conto da Escola, Pai Contra Mãe, O Enfermeiro, O Caso da Vara, Noite de Almirante, Um Apólogo, O Espelho, Umas Férias e Missa do Galo.

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A Cartomante

“Há mais coisas no céu e na terra do que sonha nossa filosofia”, disse Hamlet para seu amigo Horácio. Intimamente, poderia ser o personagem Vilela avisando para Camilo seu destino, ao final deste  conto de Machado de Assis. A escolha pela complexa intertextualidade com Hamlet, pontos de convergência com a obra famosa de Shakespeare, não se valem necessariamente pelos paralelismos ou referências. Numa interpretação mais pessoal, sem apelar para uma crítica com fervores acadêmicos, a correlação das obras se vale pela inversão dramática, pelo tão aclamado realismo de Machado que com sua literatura torna a moral a religião de uma sociedade mais viva que nunca.

Na obra de Hamlet envolvia-se vingança familiar monárquica, questionamentos moral de virtude e fantasmas. A crença social, o cheiro religioso que não se prende em cenários eclesiásticos de variadas denominações cristãs, se encontram no morto-vivo embranquecido da  obra inglesa do século XVII e nas cartas fluminenses/italianas de um anônimo e uma cartomante do século XIX. Na literatura britânica, Hamlet parece justificar a crença no fantasma de seu pai, em que o sobrenatural revela ou sustenta a introdução de um suspense e um plano teatral familiar. Já  em A Cartomante o elemento pístico (elemento de fé) na escrita de Machado é a intensidade de um clímax para o desfecho, um pico de ludibriação antes de sacramentar a vertigem moral de um adultério.

O autor brasileiro, ao começar com as crendices para sustentar o amor entre o personagem Camilo e Rita, corta a narrativa de encontro amoroso para a introdução do passado. O detalhe de como dois amigos, Camilo e Vilela, são íntimos, e toda a história de como uma tragédia materna de Camilo criou-se um triângulo amoroso – dividindo os relacionamentos entre um presente de uma bengala vistosa do amigo antigo e uma cartinha vulgar de gracejos femininos – não poderia parecer mais romântica e irônica para Machado de Assis, quando o escritor introduz Rita duvidando do amor do amante Camilo e se satisfazendo com as falas de uma cartomante. Assis coloca a risada de Camilo diante desse fato da amante ir atrás de uma crença religiosa para confirmar o amor dele, assim como um ponto e vírgula textual pode ser vilanesco para uma frase ininterrupta.

A verdade de A Cartomante é a ironia fervilhante que Assis torna a frase de Hamlet para Horácio em uma ameaça, tornando a parte “coisas na terra” como algo ainda mais relevante. Porque o suspense e a vingança vão além da filosofia, mas no caso de Camilo, as coisas do céu se tornaram mais próximas de sua filosofia como alívio da sua moralidade confrontada. Entre cartas, três ou quatro anônimas, e as da cartomante, Camilo vai do realismo ilógico ao romance lógico do leitor, uma verdadeira febre que Assis abaixa para escorrer sangue frio. Por isso o inverso de Hamlet, em que o corpo frio traz a crença que revela, enquanto em A Cartomante o corpo frio é o esconderijo da imoralidade da crença que esconde.

Várias Histórias (Brasil, 1896)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 1884.
Edição lida para a crítica: A Cartomante e Outros Contos, editora Moderna, 3ª edição, 2013.
88 páginas

 

A Igreja do Diabo

Dentro do senso comum, o cristianismo e a igreja são a organização e o que for contrário e o diabo são a desorganização. O maniqueísmo, que faz essa divisão mais direta entre o Bom (Deus) e o Mal (Diabo) no século III, muito confrontado pelos teólogos e filósofos da Patrística – escola medieval – é utilizado no trabalho que Machado de Assis exercita em seu conto A Igreja do Diabo. A conversa que o autor provoca não é teóloga – mesmo que pudesse ser desenvolvida uma conversa teológica a partir dessa literatura – mas evoca a mentalidade dualista, que tanto assola a moral da sociedade entre fazer o certo e o errado. O título, então, brinca com o substantivo e o predicado que não se cambiam, a organização (igreja) e a desorganização (do diabo) para que a ironia alcance a melancolia do ser humano realisticamente incapaz de seguir as “desregras”.

Num formato teatral de auto, dividindo o conto em capítulos, Machado de Assis é bem objetivo em traçar o plano do Diabo de fazer uma igreja com propósito de destruir as outras religiões. O princípio sobrenatural, em que até se lê uma conversa entre Deus e o Diabo no céu, quase como uma inspiração no livro de Jó da Bíblia – com adições de venenos discursivos e falas prolixas do Diabo – poderia até afastar o público do plano irônico do texto em aglutinar um paradoxo, ou uma contradição onde  o Desorganizador cria uma organização religiosa com fins  de renovar os credos históricos do cristianismo e judaísmo. O manuscrito beneditino, no qual o narrador diz achar essa história mirabolante do Diabo, é um ponto importante para se prever que a narrativa não daria certo para o inimigo de Deus, assim como as histórias de Machado intentam provocar efeitos reflexivos em sua linha literária de realismo. No entanto, a mistura com o sobrenatural poderia apontar para uma ironia inesperada.

A Igreja do Diabo acaba por evidenciar em suas minúcias que tal maniqueísmo é furado. Todo o desenvolver da igreja e os livros de sabedoria do Diabo são  tão precisamente detalhados que mais uma vez um  conto de Machado de Assis pode captar o leitor pela imersão da criatividade e contemplar mais o presente do desenvolvimento do que prever o desfecho. Os artifícios de comparação grega que o inimigo de Deus faz para legitimar os pecados, a maneira como o adultério é oficializado e divisão entre destros e canhotos como maneira de se tornar reverso ao senso comum das ordens – por vezes nem religiosas, mas sim sociais – vão ainda mais fundo na introdução descritiva do que tornava o Diabo diferente: “…sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada…”. Quando se diz no último capítulo que “…tempo abençoou a instituição.” o prenúncio da humanidade diante do paradoxo, ou contradição, iria se revelar, enquanto o Diabo se desprendia do seu agir pessoal de tentação para o  pecado.

A grande conclusão que Deus ensina ao Diabo é a contradição humana que não segue regras, desestimulando o absoluto plano irreverente do Diabo em algo comum, padronizado. Não há paradoxo e sim contradição no que o ser humano tem como caminho principal. Diabo queria provocar um paradoxo sem entender as contradições, confirmando que a caridade é caridade e misantropia é misantropia. Como foi dito, não é um conto teológico, mas o maniqueísmo introduzido por Machado de Assis é estraçalhado nos campos celestes que ele cria nos diálogos entre Deus e o Diabo. Ao final, o cristianismo é uma organização não porque quer combater a desorganização e sim propor uma plenitude além da contradição humana, uma eternidade que é paradoxo para instituições abençoadas apenas pelo tempo, mesmo que o realismo do autor só queira mesmo a melancolia de que a ironia não salva nem mesmo Diabo, imagina o humano.

Histórias Sem Data (Brasil, 1884)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro e depois compilado em Histórias Sem Data, de 1884
Edição lida para a crítica: A Cartomante e Outros Contos, editora Moderna, 3ª edição, 2013.
88 páginas

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