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Crítica | A Casa Que Jack Construiu

por Luiz Santiago
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Por não gostar da pessoa de Lars Von Trier e, por tabela, ter desenvolvido um certo afastamento de sua filmografia (embora sempre tenha defendido que Dogville e Melancolia são obras-primas) eu fui para a sessão de A Casa Que Jack Construiu, na 42ª Mostra SP, com a certeza de que iria odiar o filme. Primeiro, aquela polêmica com a debandada em massa do público no Festival de Cannes. Depois, a realização de que o filme trazia “violência contra crianças“, algo que nunca é interessante ou fácil de se ver nas telas, especialmente num filme de alguém tão “sem regras” quanto este diretor. Mas o filme, por incrível que pareça, não aciona a justificativa de afastamento inicial que eu — e creio que muitos de vocês — normalmente temos para o tratamento da violência em uma obra de arte. Aqui, ela não é gratuita.

O roteiro, escrito por Von Trier em parceria com Jenle Hallund não se nega em nenhum momento, e o espectador deve ter em mente a regra básica de qualquer obra de arte, no que concerne à coerência: ela precisa entregar para o público exatamente o que promete e esta entrega deve ter ingredientes cênicos marcados por um propósito, ou seja, não estar na tela unicamente para chocar. A sinopse e o trailer do filme deixavam claro o que se deveríamos esperar aqui. Jack (Matt Dillon, em uma interpretação que não exige muita coisa dele além do deboche e da cara de psicopata), ao longo de 12 anos, comete diversos crimes. Ele é um serial killer que tem um amplo conhecimento de artes e que pratica a violência num caminho pessoal para atingir prazer, se livrar da dor interna e criar algo artisticamente. Daí para frente, o que temos de elemento gore na fita, não está deslocado e nem o diretor está querendo mostrar demais para chocar. A Casa Que Jack Construiu não é O Anticristo.

É evidente que a percepção de “excesso” ou qualquer outra contrariedade em relação ao uso da violência aqui vai mudar de espectador para espectador. Quanto é demais em um filme sobre um serial killer? Isso condiz com o que o filme propõe? É válido dentro da obra? Ou o espectador deixará a discussão de construção de roteiro de lado e começará a discutir moral e ética? Nesse ponto, separações podem acontecer, e não vejo muitas conciliações aqui. É normal, porque a situação é extrema e desconfortável. Na minha leitura, todavia, nenhuma cena violenta está aqui quando “não deveria estar”. Os cartazes de divulgação da obra já diziam que a película estaria dividida em “incidentes”, ou seja, crônicas de assassinatos cometidos por Jack, histórias de como essas escolhas aleatórias, em uma conversa com Virgílio (Bruno Ganz), se ligam a diferentes concepções do personagem para a arte. E neste ponto o filme ganha uma outra camada, fugindo do óbvio.

O título do longa vem de uma rima tradicional britânica que é equivalente à nossa A Velha a Fiar. Na rima, Jack constrói uma casa e nela, guarda grãos; aí vem o rato que come o grão; depois o gato que come o rato… bem, vocês sabem até onde isso vai. Esta mesma dinâmica anunciada no título, de narrativa em abismo, é utilizada pelo roteiro, onde vemos aparecer personagens que serão afetados ou consumidos pelo mais forte, logo no verso seguinte. Como um artista (e ao que parece, também um profissional) fracassado, a única coisa que Jack consegue fazer bem é causar sofrimento aos outros, contando com uma boa dose de sorte, desprezo dos moradores da região onde mora e, claro, uma grande dose de absurdo do texto, que expõe e literalmente tira sarro de situações fáceis demais para o personagem. A narrativa em off, cuja explicação vem em alto estilo no fim do filme, toma o espectador pela mão e, diante dele, tenta construir uma casa com diferentes materiais artísticos, utilizando diferentes formas, modelos, correntes. Jack é Lars Von Trier tirando o maior sarro de si mesmo.

A questão da assinatura na direção pode ser um problema para alguns, novamente. Como se sabe, o diretor tem um modelo específico de guiar algumas cenas e, aceitá-las ou vê-las como boas ou ruins, vai de cada espectador. Minha relação com o estilo de Von Trier é bastante volátil, mas aqui, penso que funcionou muito bem. Meus problemas com o longa estão mesmo na montagem (cada ato poderia ser um pouco mais curto, porque no conjunto, eles dão informações suficientes para ligar o protagonista a uma discussão sobre arte, não há necessidade alguma de alongar isso), principalmente na primeira parte da caminhada de Jack e Virgílio. Neste ponto, vemos cenas muito rápidas e que parecem inteiramente desconexas, especialmente a que reproduz uma certa pintura de Eugène Delacroix, cena de beleza estonteante, mas que está mal colocada dentro daquele pedaço no ato final, referenciando a famosa obra de Dante.

Por que alguém é cruel? A arte serve como espaço de sublimação de desejos perigosos? O artista passa para o cinema, para as artes plásticas, música, escultura, todos os horrores que não consegue fazer em sociedade? Esses dilemas são colocados no filme exatamente como os pensamos, entre o real e o irreal, situação diante da qual Von Trier se descortina. Ele é professoral? Sim, é, mas a narrativa é propositalmente construída assim. Goste ou não goste dela, a narração e as lições de arte estão ligadas em imagem e conceito ao núcleo da obra, seja pela mudança de tom da fotografia a cada ato ou pelo tipo de planos predominantes que o diretor escolhe para nos mostrar aquele determinado “incidente”. E ele faz isso muito bem.

Majoritariamente acompanhados por Fame, de David Bowie, os blocos da fita corrompem ao máximo (no sentido mais positivo possível) a ideia de que nascemos nus e com fome. Essas duas situações irão se costurar com a tapeçaria artística nas paredes da casa que Jack construiu, uma casa que é tanto a inspiração quanto a execução; a vontade e o prazer de fazer; a realização de entregar algo para que os outros (nós, o público) se sintam descendo pelos círculos do inferno. Então vem a pergunta pessoal: isso é válido na arte? Ou é só a justificativa que precisamos para dizer a um certo alguém que “Caia na estrada, Jack e não volte nunca mais / nunca mais, nunca mais, nunca mais / Caia na estrada, Jack e não volte nunca mais“?

A Casa que Jack Construiu (The House That Jack Built) — Dinamarca, França, Alemanha, Suécia, 2018
Direção: Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier, Jenle Hallund
Elenco: Matt Dillon, Bruno Ganz, Uma Thurman, Siobhan Fallon Hogan, Sofie Gråbøl, Riley Keough, Jeremy Davies, Ed Speleers, David Bailie, Ji-tae Yu, Christian Arnold, Cohen Day, Rocco Day, Jerker Fahlström, Osy Ikhile, Marijana Jankovic, Johannes Kuhnke
Duração: 155 min.

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