Home LiteraturaConto Crítica | A Causa Secreta e Missa do Galo, de Machado de Assis

Crítica | A Causa Secreta e Missa do Galo, de Machado de Assis

Machado de Assis criando leitor realista e mostrando a graça do cotidiano.

por Davi Lima
2,7K views

Nesse compilado com duas críticas de dois contos do escritor brasileiro Machado de Assis, A Causa Secreta e Missa do Galo se conversam quanto a ousadia machadiana na literatura, mostrando mais um pouco da história do escritor quando trabalhava na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro entre 1881 e 1897. Ambos são publicados atualmente no livro A Cartomante e Outros Contos, reunindo outros textos como: O Conto da Escola, Pai Contra Mãe, O Enfermeiro, O Caso da Vara, Noite de Almirante, Um Apólogo, O Espelho, Umas Férias, A Igreja do Diabo e A Cartomante.

 

A Causa Secreta

Para um século XIX em desenvolvimento da literatura realista, que de maneira superficial pode-se dizer que teve início na França na década de 1860, Machado de Assis traz o tema da morte em seu conto A Causa Secreta como negociação com os leitores românticos da Gazeta de Notícias, onde publicou a maioria de suas crônicas e contos. Muito da imaginação literária da época se constava nos triângulos amorosos, histórias de adultérios e tragédias por amor. Por isso, Assis inicia seu conto com uma descrição cênica e misteriosa. Dois homens, um sentado e um em pé, enquanto uma mulher costurava. Além disso, diz para o leitor que os personagens estão mortos, e  o narrador desenvolve uma pintura realista de Garcia, Fortunato e Maria Luísa como grandes figuras que merecem ter suas histórias contadas nos quadros e nos contos. Mas a justificativa de se contar a narrativa sobre os três é a morte, aprontando a isca ultrarromântica para investigação do cotidiano.

A construção do espaço da narrativa pelas ruas fluminenses introduz a verossimilhança que era costumeira de romances de José de Alencar, por exemplo. Isso, porém, perpassa a descrição como contexto de personagens, criando suspense e até mesmo perseguição entre Garcia e Fortunato. A quebra da convenção dos contos românticos é cada vez mais tornar a intriga em algo perigoso, mais próximo do fato. Como era normal ler no jornal casos de assassinato e violência nas ruas, o fato de um empregado no arsenal da guerra, chamado Gouvêa, ser apunhalado pelos ditos capoeiras (provavelmente os grupos maltas, que introduziram a navalha na arte da capoeira) como grande registro do momento em que Garcia e Fortunato se conhecem realmente, ajudando um paciente; destaca o intuito de Machado em compor o realismo como senso narrativo, além da verossimilhança clássica.

Dessa forma, quando as características mais conhecidas dos contos românticos aparecem, os diálogos se permutam com muita ironia e com uma objetividade pouco comum para um um triângulo amoroso. Quando Garcia revela um amor proibido por Maria Luísa, casada com Fortunato, não há traição, não há adultério, e sim o médico Garcia querendo evitar o médico Fortunato. A expectativa é quebrada, mas o olhar do narrador para o entendimento moral de Fortunato e as preocupações de Garcia com a saúde de Maria Luísa vão triangulando os personagens. Em algum momento, se fosse possível imergir na mente de um leitor da Gazeta no século XIX, poderia ser que ele se sentisse defraudado.

Machado de Assis provoca o romance pela morte, não o tradicional. A volúpia descrita entre Aurélia e Fernando num livro como Senhora de José de Alencar, em sua fase bem próxima do realismo literário, no conto A Causa Secreta se faz entre o médico cientista Fortunato e um rato despedaçado e queimado. Descrevendo isso soa aterrorizante e masoquista, até mesmo fúnebre. Mas é isso que Assis transporta para uma investigação moral do desejo e prazer de um homem em tratar da morte, ou sentir dor. É certo que há um eufemismo que o trabalho médico coloca sobre um homem fazer experimentos com animais e não se incomodar com isso. No entanto, Machado é irônico em propor um desgarramento da humanidade mais comum, especialmente o romantismo.

Logo, a defraudação total do leitor acontece quanto a morte atinge o triângulo amoroso, mas entre o cuidar de um médico e o beijo de outro médico, o conto se encerra como uma grande quebra de expectativa para qualquer romântico clássico, apesar de atingir muito bem os leitores afeiçoados ao romance do prazer. Machado de Assis é sagaz com um conto ultrarromântico em seus temas, porém demonstra com sua literatura realista que são ainda mais assustadores quando os fatos se tornam românticos porque os personagens morreram para que se contasse  a história deles.

Várias Histórias (Brasil, 1896)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1885.
Edição lida para a crítica: A Cartomante e Outros Contos, editora Moderna, 3ª edição, 2013.
88 páginas

 

Missa do Galo

A Missa do Galo é muito simbólica sobre acordar algo interior no  ser humano, porque  o galo cantando revela a esperança vinda pela  manhã: o que passou se torna objeto  de transformação, seja religiosa, seja do anseio da pessoa. Como sempre, Machado de Assis é ousado, como se estendesse a noite em que Pedro negou Jesus três vezes na história bíblica para que, quando galo cantasse, concluindo a profecia de Jesus, o erro de Pedro fosse dramatizado até o último minuto, desgastando a culpa do discípulo ao ponto que sobrasse um canto irônico e desolador pouco religioso, mesmo que ainda transformador. Faço essa analogia para que se entenda como o conto Missa do Galo é o puro cotidiano gracioso, onde a beleza da fé se mostra em  conhecer a santa Conceição, personagem que fez um jovem 17 anos parar de ler Os Três Mosqueteiros e esquecer juventude para conhecê-la na perfeição realista de uma noite.

O conceito de perfeição muito passa pela ideia de santificação e pureza. A graça religiosa cristã, aquela que dá vida ao ser humano para não ser punido pelos seus pecados com furor divino, participa de um complexo teológico que não tem lógica em uma justiça humana. A personagem Conceição, dentro do universo machadiano, é a graça. A Missa do Galo, no Natal, lembra aos fiéis que Jesus nasceu e proveu a graça, e quando o protagonista do conto diz: “…a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre“, após conversar com essa senhora na virada de meia-noite, antes da missa natalina, Machado de Assis consegue  tornar a interpretação jovial da graça numa mulher que o encanta com o mais puro e vivo diálogo.

Conversar com pessoas mais velhas, ou que tenham uma bagagem de vida, desenvolve histórias orais e tempos muito próprios, ao ponto de  o ordinário se tornar extraordinário, especialmente na mente de um jovem do personagem narrador. O desenvolvimento narrativo de Machado de Assis, no conto, ludibria com as pausas e as interações visuais da personagem mudando de lugar, enquanto o protagonista estático parece ter um momento teofânico, em que uma espécie de santa sai do escuro, de camisola, e decide esperar com ele a Missa do Galo. A narração parece negar três vezes a possibilidade de a conversa parar, algo típico de Machado, quando inverte implicitamente os quesitos religiosos, como se precisássemos entender melhor por que Pedro negou Jesus do que apenas ver o fato acontecer para esperar o galo e notar a profecia se cumprir.

Conhecer Conceição mais a fundo, a ponto de qualquer minuto a missa começar, é como a história de Marta e Maria, uma afobada cuidando da casa e outra atenta aos ensinamentos de Jesus. O  leitor, por um lado, pode ficar preocupado com o horário do protagonista e seu objetivo principal de acordar o vizinho, mas se quer ter mais palavras da senhora imaculada falando sobre seus sonhos, sobre os quadros da parede e como pensa muita coisa estranha. Mais uma analogia bíblica antes que o vizinho bata na janela e interrompa a graça do conto de A Missa do Galo, e compreender que a mulher julgada como corna mansa era apenas uma mulher com sono leve, muito bonita de noite, esperando o galo machadiano cantar, rouco, com o narrador alentando o leitor que seu esposo morreu internamente, com apoplexia, quando nós descobrimos a vida interna de uma santa realista demais para não ser sobrenatural.

Páginas Recolhidas (Brasil, 1899)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1893.
Edição lida para a crítica: A Cartomante e Outros Contos, editora Moderna, 3ª edição, 2013.
88 páginas

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais