Eric Auerbach, renomado crítico literário e teórico, é amplamente reconhecido por sua obra seminal Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. Neste trabalho, o autor alemão desenvolve uma análise profunda das tradições literárias, apoiando-se em comparações que expõem as diferenças fundamentais entre a narrativa da poesia homérica, personificada no poema épico Odisseia, em paralelo ao que é delineado na literatura do Velho Testamento, em um texto que particularmente analisa a maneira como ambas as composições representam a realidade e exploram a condição humana. Interessante observar que, para entender plenamente as distinções traçadas por Auerbach, é necessário primeiro reconhecer os contextos culturais e literários de cada obra. A Odisseia, atribuída ao grego Homero, é uma das “grandes obras” fundadoras da literatura ocidental, repleta de um lirismo que, embora profundamente enraizado em uma tradição oral, busca refletir a experiência pessoal de um herói. Por outro lado, o Velho Testamento, com suas múltiplas vozes e narrativas, representa uma coleção de textos religiosos que se preocuparam, essencialmente, em transmitir a relação entre Deus e a humanidade, abordando temas de fé, moralidade e história.
Uma das contribuições mais significativas de Auerbach reside em sua análise do conceito de “cicatriz”, simbolizada na figura de Ulisses. No contexto da Odisseia, a cicatriz de Ulisses não é apenas uma marca física, mas uma metáfora rica que encapsula sua jornada, sua experiência e seus desafios. Auerbach argumenta que esta cicatriz representa uma forma de autenticidade pessoal e um testemunho das vivências que moldam a psique do herói. Ulisses, ao longo de seus infortúnios, se torna não apenas um personagem, mas um exemplo da complexidade da condição humana, tornando sua história universal e atemporal. O autor contrasta isso com a abordagem do Velho Testamento, onde as narrativas tendem a ser mais coletivas e menos focadas na experiência individual. Através de figuras como Moisés e os patriarcas, o texto bíblico enfatiza a relação do indivíduo com um Deus transcendente, destacando a salvaguarda e a direção divina em uma história de redenção e promessa. Neste contexto, a alegoria da cicatriz se desdobra de uma forma diferente: a dor e o sofrimento do povo escolhido são marcados, mas frequentemente reivindicados como parte de um plano divino maior. A cicatriz, assim, não diz somente respeito à experiência individual, mas está imbuída de um sentido mais coletivo e religioso.
Auerbach utiliza a figura de Ulisses para argumentar que, enquanto a literatura homérica busca se concentrar no detalhe e no particular, isto é, com suas minuciosas descrições da personalidade, dos desejos e das motivações de Ulisses, enquanto o Velho Testamento frequentemente oferece uma perspectiva mais abrangente e abrangente, restringindo-se muitas vezes ao contexto histórico e cultural em uma visão mais vasta da providência divina. Auerbach observa que, nesta luta entre o particular e o universal, a poesia homérica se coloca em um espaço reflexivo que revela um profundo grau de subjetividade, permitindo ao leitor vislumbrar a vulnerabilidade humana. Uma importante ilustração que utilizada em suas reflexões é a diferença na representação do sofrimento. Na Odisseia, o sofrimento de Ulisses é pleno, revelando suas inseguranças, temores e sua incerteza em face de um destino que parece muitas vezes cruel e caprichoso. É um sofrimento que revela a fragilidade da condição humana, onde o heroísmo é intercalado com momentos de dúvida e desespero. Aqui, Auerbach destaca como os personagens de Homero estão imbuídos de uma rica realidade emocional, que captura perfeitamente a luta interna e a individualidade.
Por outro lado, no Velho Testamento, o sofrimento é frequentemente apresentado de forma construtiva, com um propósito ou uma lição a ser aprendida. Enquanto os personagens enfrentam dificuldades, a narrativa geralmente sugere um significado maior para essas experiências, propondo uma estrutura na qual o sofrimento é integrado no plano divino. Auerbach aponta para a história de Jó como um exemplo, onde, apesar do sofrimento extremo, a narrativa lida com questões de fé e a busca de um entendimento que transcende a dor. No desenvolvimento da reflexão que não é exatamente complexa, mas requer uma base de leitura sólida para o devido acompanhamento, o autor não apenas discute a natureza da narrativa, mas também reflete sobre o impacto da forma literária na recepção das obras. A Odisseia, com seu ritmo e suas imagens vívidas, convida à introspecção e à empatia do leitor, enquanto o Velho Testamento, com sua estrutura mais vertical e fundamentalmente religiosa, busca transmitir um sentido de transcendência. Essa diferença em estilo reflete a função distinta que essas narrativas desempenham dentro de suas respectivas culturas. Uma busca explorar a complexidade da experiência humana e outra que caminha por afirmar a soberania de Deus na história.
Em linhas gerais, caro leitor, o ensaio conclui que as duas formas, apesar de suas diferenças, desempenham papéis cruciais na literatura ocidental. Colocando em diálogo Homero e os textos bíblicos, Auerbach promove um entendimento mais profundo sobre a tradição literária e a diversidade de narrativas que moldaram a literatura ocidental. Enquanto que a poesia homérica evoca a complexidade da subjetividade individual e da experiência humana, o Velho Testamento reafirma uma narrativa coletiva de fé e resistência, cada um com sua beleza e significado intrínsecos. Panoramicamente, o estudo de Eric Auerbach sobre as distinções entre a poesia homérica e o Velho Testamento nos oferece um detalhado painel de interpretações que visam não apenas destacar as qualidades únicas de cada tradição, mas também fornecer uma reflexão mais ampla sobre a condição humana. Assim, A Cicatriz de Ulisses se torna, portanto, um ensaio basilar em qualquer estudo acadêmico ou diletante na perspectiva da literatura comparada, um texto que nos convida à introspecção e à compreensão em um mundo onde a literatura continua a nos conectar às nossas experiências mais profundas. Para os tempos atuais, de inchaço intelectual com tanta coisa sendo produzida e entregue, ensaios como este podem ser desafiadores, mas acreditem, vão ajudar em sua reconexão com leituras mais densas.
A Cicatriz de Ulisses (Alemanha, 1946)
Autoria: Eric Auerbach
Tradução: Manoel da Costa Pinto
Editora: Perspectiva
Páginas: 520
