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Crítica | A Cidade & A Cidade, de China Miéville

por Cida Azevedo
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Para um morador de metrópole, os contrastes são rotina.

São Paulo, por exemplo, não é uma cidade apenas, mas várias – que vão da Paulista aberta aos domingos aos fluxos nas ruas da periferia, do tráfego de táxi aéreo aos vendedores ambulantes da CPTM, e daí por diante. A multiplicidade de culturas, histórias e logradouros é fato conhecido e explorado. Essa vivência metropolitana, no entanto, não prepara o leitor para as cidades de Besźel e Ul Qoma, cenários de A Cidade & A Cidade, descritas por China Miéville como duas cidades que dividem o mesmo espaço geográfico, se cruzam, se sobrepõem, e mesmo assim mantêm rígidas fronteiras ideológicas, com severas punições àqueles que ousarem atravessá-las.

Besźel e Ul Qoma são cidades-estado independentes, localizadas em algum lugar do leste europeu. Ocupando a mesma terra, há ruas de Besźel paralelas a ruas de Ul Qoma; ruas que começam em uma cidade e terminam em outra; vizinhos vivendo em cidades diferentes. Essa configuração inusitada confunde o leitor no início, antes que se perceba que cada cidade adota cores, roupas, posturas diferentes, sinais que indicam o que pode ou não ser visto, tocado, vivido. As fronteiras entre esses dois lugares são extremas e vigiadas por uma entidade chamada Brecha, que, tal como uma espécie de Big Brother, tudo vê e tudo domina. O enredo tem início quando uma moça é assassinada em uma das cidades e tem seu corpo desovado na outra, sem que seus assassinos sejam pegos pela Brecha. Assim, torna-se tarefa do inspetor de polícia Borlú – o protagonista da trama – realizar essa investigação, sempre na corda bamba entre as fronteiras, equilibrando-se para também ele não se tornar um criminoso à medida que é obrigado a explorar ambas as cidades.

A Cidade & A Cidade pode parecer à primeira vista um romance policial, dado seu teor investigativo. Mas é muito mais que isso. Passando pela fantasia e também pela weird fiction, o livro possui um teor bastante sócio-político-econômico, que não passará despercebido a leitores maduros. Nesse ponto, é interessante notar que seu autor é acadêmico marxista, formado em antropologia social, e militante de esquerda, membro inclusive da Internacional Socialist Organization. Permeiam o enredo críticas a questões como burocracia institucional, nacionalismo, xenofobia e fascismo – tão pertinentes na Europa de hoje – e também à indiferença ao outro, ao “diferente” de nós.

Em algum momento do passado, Besźel e Ul Qoma foram separadas, e no tempo do inspetor Borlú há grupos que defendem a unificação das cidades e também grupos separatistas radicais. Além do fascismo presente nesses últimos, é notável como eles são manipuláveis, conforme o enredo avança. O romance, de modo geral, é um jogo entre o “tão perto” e o “tão longe”, já que a dinâmica dessas cidades é completamente maluca à primeira vista, e poucos capítulos depois é tão fácil nos reconhecermos nelas. Apesar da presença da Brecha e do medo imposto por ela, com o passar das páginas percebemos que o que separa de fato essas cidades são as próprias pessoas. Seja por medo, xenofobia ou comodismo, os moradores de Besźel e Ul Qoma são passivamente levados a jamais questionarem essa fragmentação. Nesse sentido, o que mais chama a atenção é o ato nomeado como “desver”.

Quando um habitante de Besźel repara sem querer em algo que está se passando do outro lado da rua – em Ul Qoma – por exemplo, ele deve “desver” o mais rápido possível, ou seja, não esboçar nenhuma reação, fingir que não viu e nunca mais tocar no assunto. Se conseguir fazer isso satisfatoriamente, a pessoa em questão se livrará de ser punida pela Brecha. O que é impossível não pensar durante a leitura é: quantas pessoas você já “desviu” hoje? Quantas situações, vidas e acontecimentos “desvemos” diariamente para não sairmos de nossa zona de conforto, para não sermos obrigados a estourar nossas bolhas ou deixarmos a caverna? Os paralelos são inevitáveis.

A narrativa de Miéville não é do tipo de leveza que se lê com a TV ligada. Exige certa concentração, seja para abarcar as muitas informações sobre a dinâmica das cidades e as pistas do crime cometido – como todo romance policial – seja para apreender as nuances e críticas às nossas cidades, ora sutis, ora diretas, mas sempre presentes. Guiados pelo olhar de Borlú, conhecemos e nos embrenhamos cada vez mais nessa rede que não é nada simples, mas que com certeza compensa cada percalço.

O maior ponto negativo fica por conta da fraca construção das personagens – não há personas cativantes ou profundas. Mesmo o inspetor Borlú ou a moça assassinada, cuja identidade vai se revelando aos poucos, estão longe de serem marcantes ou surpreendentes. Ademais, a leitura pesada, truncada, pode desanimar leitores mais impacientes. Mas aos sobreviventes será concedido um desfecho bastante interessante e, sobretudo, reflexivo.

A Cidade & A Cidade é uma grande metáfora do nosso sistema sócio-político, que como todo bom livro de fantasia, encontra ecos não ocasionais na realidade. O que fica ao fim da leitura do romance de estreia de Miéville é que Besźel e Ul Qoma não são tão fantasiosas ou distantes quanto parecem à primeira vista: pelo contrário, ficam logo aqui ao lado. E mesmo que tentemos “desver” o que não nos apetece, a verdade é que o que foi lido não pode ser deslido.

A Cidade & A Cidade (The city and the city) – Inglaterra, 2009
Autor: China Miéville
Editora original: MacMillan
Editora no Brasil: Boitempo Editorial
289 Páginas

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