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Crítica | A Cidade É Nossa (We Own This City)

Uma gota no oceano.

por Ritter Fan
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Em abril de 2015, a afro-americano Freddie Gray foi preso pela polícia de Baltimore por posse de uma faca e transportado em uma van do departamento onde sofreu ferimentos que levaram a sua morte alguns dias depois. Esse foi apenas um dos assassinatos causados por policiais nos EUA que levaram a revoltas e manifestações por todo o país e é com essa terrível situação como pano de fundo que A Cidade É Nossa, mais nova produção televisiva de David Simon e George Pelecanos, existe e se torna de grande relevância.

A morte de Gray não é o foco da minissérie dos criadores de The Wire, mas o fantasma de tudo o que ela representa – violência policial, preconceito racial, descompromisso político – assombra cada linha de diálogo dos seis episódios integralmente baseados em fatos reais a partir do relato jornalístico homônimo publicado em forma de livro em 2021 pelo ex-repórter do Baltimore Sun – como fora o próprio Simon – Justin Fenton. O ponto dos showrunners é usar o notório caso de corrupção policial da equipe de elite à paisana batizado de Gun Trace Task Force (Força-Tarefa de Rastreamento de Armas), ou GTTF, especializado, como seu nome indica, em reduzir a posse ilegal de armas por cidadãos, e liderado pelo Sargento Wayne Jenkins (Jon Bernthal), como uma clara e inequívoca demonstração de um problema muito mais amplo e muito maior do que os policiais investigados e que vai muito além do próprio departamento de polícia e da própria cidade de Baltimore. Simon e Pelecanos usam o micro – e perdoem-me chamar o caso real de micro, mas infelizmente ele o é em termos comparativos – para abordar o macro que, claro, é aplicável de uma maneira ou de outra a diversos outros países do mundo, inclusive, não tenham dúvidas, o Brasil.

Considerando a localização geográfica da minissérie e seus showrunners é basicamente impossível deixar de traçar paralelos com The Wire, série que eu considero uma das melhores já feitas na História da TV, mas essa comparação não só é injusta como é também capaz de criar expectativas que não serão atendidas. Para começo de conversa, o espaço narrativo de A Cidade É Nossa é bem menor, apenas seis episódios em que muita informação precisa ser passada, sem que haja tempo para a clássica e lenta construção da narrativa e dos personagens. Além disso, estilisticamente, Simon e Pelecanos escolheram criar uma obra de ficção que, porém, se aproxima de um documentário, seja pelo uso de cenas capturadas por câmeras de segurança, seja pela natureza objetiva com que as questões são abordadas ou até mesmo pelo constante vai e vem temporal usado para corroborar e contextualizar situações que vemos em 2017, o presente da minissérie.

Portanto, quem procurar The Wire em A Cidade É Nossa não encontrará nada que não seja a temática policial geral, a cidade como pano de fundo e a participação de alguns atores da série clássica aqui e ali, como é o caso de Delaney Williams, que faz o Comissário de Polícia. De resto, a minissérie é uma obra até bastante diferente na carreira da dupla justamente por tratar menos de personagens e mais de política, o que, de certa forma, a leva a caminhos razoavelmente didáticos que, por vezes, atravanca a fluidez da história, algo que é acentuado pela montagem nem sempre muito eficiente em contar os eventos de maneira não-linear. Quando não há arcos de personagens com quem possamos nos identificar, dependemos demais da narrativa e, ainda que ela seja capaz de nos prender por sua força e, não tem outra expressão, absurdo de tudo o que vemos, a proximidade com a linguagem documental sem que a minissérie se decida sobre ser uma coisa ou outra cria um vale de estranheza por diversos episódios.

No entanto, consigo compreender o que foi feito e o porquê do que foi feito. The Wire, por melhor que seja, é, se visto à distância, uma série que olha o crime a partir do ponto de vista da polícia, o que automaticamente coloca a força policial como do lado correto da “guerra às drogas” iniciada pelo presidente Richard Nixon, em 1971. Em A Cidade É Nossa, vemos a mesma coisa, só que tendo a polícia literalmente no banco dos réus, e, mais ainda, apenas como uma representante palpável de um problema sistêmico infinitamente maior. Para fazer isso, duas narrativas principais existem na minissérie, uma delas lidando diretamente com a investigação, pelo FBI, da Força-Tarefa de Jenkins, com a imputação dos mais variados crimes, de fraude na contagem de horas extras até roubo e tráfico de drogas e outra, mais ampla, lidando com os esforços de Nicole Steele (Wunmi Mosaku), advogada da Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça, em construir um acordo do Governo Federal com a Cidade de Baltimore sobre as ações ilegais de sua polícia.

As duas linhas narrativas, apesar de terem muito em comum já que a segunda tenta tratar da doença que a primeira representa, pouco verdadeiramente conversam e caminham em paralelo, mas com objetivos diferentes, ainda que complementares. Não há, porém, qualquer conflito aí e a paralelização das ações, muito longe de detrair uma da outra, criam excelentes complementos que nos permitem ter uma visão mais ampla da história, o que inclui a corrida para se fazer todo o possível antes que o então candidato à presidência Donald Trump chegue ao poder. Aliás, nesse tocante específico, percebe-se pelos roteiros a aversão de Simon e Pelecanos pelo governo Trump, com o texto servindo de uma mais do que explícita condenação “prévia” do que viriam a ser os quatro anos dele no poder.

Apesar de Bernthal e Mosaku estarem ótimos em seus papeis, o primeiro sempre empinado, falando alto, recusando-se a reconhecer quem ele verdadeiramente é e a segunda cada vez mais percebendo como sua luta é o equivalente jurídico a enxugar gelo, a minissérie não é sobre personagens e, portanto, os atores acabam vivendo “apenas mais dois” em meio a tantos outros. Quem curiosamente ganha um arco narrativo mais completo e engajante é o detetive de homicídios Sean Suiter (Jamie Hector) que, antes de mudar de departamento, trabalhara na equipe de Jenkins e que acaba, indiretamente, sendo envolvido na investigação.

A Cidade É Nossa ao tentar ser uma ficção muito próxima de um documentário, acaba não conseguindo realmente acertar em cheio em nenhum dos dois alvos. Falta a profundidade que um documentário exige e falta o desenvolvimento narrativo que uma obra de ficção demanda ainda que o “meio do caminho” seja capaz de abrir nossos olhos para uma situação que parece não ter qualquer solução, que continua gerando “Freddie Grays”, e que, por vezes, exatamente por essa característica, preferimos fechar os olhos, especialmente se não somos os alvos costumeiros da corrosão sistêmica da polícia em particular e do Poder Público em geral. Wayne Jenkins pode ser corrupto, mas suas ações perfazem apenas um pequena engrenagem de uma máquina tão ampla que sequer somos capaz de perceber seu tamanho ou mesmo sua presença ao nosso redor.

A Cidade É Nossa (We Own This City – EUA, 25 de abril a 30 de maio de 2022)
Desenvolvimento: David Simon, George Pelecanos (baseado em obra de Justin Fenton)
Direção: Reinaldo Marcus Green
Roteiro: George Pelecanos, David Simon, Ed Burns, William F. Zorzi, D. Watkins
Elenco: Jon Bernthal, Wunmi Mosaku, Jamie Hector, Josh Charles, McKinley Belcher III, Darrell Britt-Gibson, Rob Brown, David Corenswet, Dagmara Domińczyk, Don Harvey, Larry Mitchell, Ian Duff, Delaney Williams, Lucas Van Engen, Treat Williams, Gabrielle Carteris, Tray Chaney, Domenick Lombardozzi
Duração: 353 min. (seis episódios)

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