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Crítica | A Costa do Mosquito

por Ritter Fan
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O australiano Peter Weir tem relativamente poucos longas-metragens em seu currículo, mas sua sensibilidade como cineasta é visível na grande maioria de suas obras, várias tendendo a abordar o existencialismo desde o onírico Piquenique na Montanha Misteriosa, passando pelo thriller A Testemunha e, claro, chegando aos lindamente emotivos Sociedade dos Poetas Mortos e O Show de Truman: O Show da Vida. A Costa do Mosquito, baseado em romance homônimo de Paul Theroux, talvez seja sua obra menos lembrada e comentada, mesmo tendo sido lançada no ano seguinte à A Testemunha e contando novamente com Harrison Ford como protagonista, além de Helen Mirren e o saudoso River Phoenix no mesmo ano de Conta Comigo.

Narrada por Charlie Fox (Phoenix), a história nos leva dos EUA até a costa do título, também chamada Mosquitia, que se estende pelo Atlântico do sul de Honduras até quase toda a Nicarágua, algo que é engatilhado pela profunda insatisfação de seu pai, Allie (Ford), com o caminho que os Estados Unidos está trilhando, com o consumismo exacerbado sendo a razão para praticamente tudo, algo que é estabelecido de maneira acanhada no filme, devo confessar. Sem planejamento sólido, o patriarca arrasta sua esposa (Mirren, cuja personagem é chamada apenas de Mãe), o adolescente Charlie, o pré-adolescente Jerry (Jadrien Steele) e as gêmeas menores April e Clover (Hilary Gordon e Rebecca Gordon) para o meio do nada com coisa nenhuma depois de “comprar” vilarejo e começar a construir sua utopia anti-mercantilista que, não demora, torna-se exatamente aquilo que ele queria evitar e, depois, uma verdadeira distopia no meio da selva, criando um magnífico recorte transformativo de Terra Prometida em Terra Arrasada, exatamente como Allie vê os EUA.

A ironia do longa, portanto, é soberba. Allie, vocal defensor de uma “pureza civilizatória”, por assim dizer, traz a civilização americana para o seio de uma comunidade que, mesmo vivendo na miséria, vivia exatamente de maneira pura. Ao afirmar por diversas vezes que “gelo é civilização”, já que sua grande invenção é uma máquina que faz gelo a partir de fogo (sua versão gigante sempre me faz lembrar do Moloch de Cabiria e, claro, de Metrópolis), ele não só cria demanda onde não existe, como demonstra sua hubris em firmar-se como um ser superior a todos os “selvagens” à sua volta, incluindo sua própria submissa família. Allie, enquadrado inicialmente como um idealista, um homem disposto a despir-se de luxos para mergulhar de cabeça em uma experiência antropológica que exige coragem – ou loucura -, logo é visto sob as lentes de um homem querendo asseverar sua dominância, como um felino de grande porte marcando seu território.

É fascinante ver como o roteiro de Paul Schrader lentamente introduz, desenvolve e principalmente paraleliza o papel do Reverendo Spellgood (Andre Gregory) que a família Fox conhece no navio que os leva ao seu destino e com quem Allie logo antipatiza, representando a oposição entre ciência e religião. Mas por mais pernicioso que seja o trabalho de catequização dos “selvagens”, algo que a direção de Weir se esmera em deixar claro, sem recorrer a obviedades, o conflito estabelecido tem uma resolução que sensacionalmente subverte expectativas e revela a estrutura religiosa como extremamente organizada, rivalizando a utopia de Allie, só que de maneira mais sustentável, fazendo-o odiar ainda mais o reverendo em uma postura para lá de egoísta.

Aliás, egoísmo e egocentrismo são as maiores características do protagonista, com Harrison Ford muito provavelmente tendo, aqui, ainda razoavelmente no começo de sua carreira, seu melhor trabalho dramático. O clássico estilo simpático do ator, muito graças à delicada lente de Weir, não tenho dúvida, vai aos poucos ruindo e abrindo espaço para um homem que se considera quase que literalmente o centro de seu mundo, com todos os seus cordeiros gravitando ao redor. Suas intenções são idênticas às da Igreja e seus meios também, já que um prende o “selvagem” com a promessa de que desvios de crença levam à perdição enquanto o outro deixa evidente que não seguir a ciência e o que ela proporciona (ar-condicionado!) é o caminho à ruína, à incivilidade. Allie é tão ou mais preconceituoso que Spellgood, com a diferença que o reverendo tem maior consciência dessa circunstância do que o inventor maluco, o que automaticamente torna Allie um personagem detestável, um dos poucos papeis da carreira de Ford que é vai contra o tipo de papel que o notabilizou.

A Costa do Mosquito é um inesquecível recorte cinematográfico da civilização ocidental que Peter Weir usa para também estudar a natureza humana e, claro, o assustador caminho da sanidade ruindo. Não é uma obra fácil ou agradável de se assistir quando fica evidente que o que ela condena é muito mais do que um homem representando atos históricos de imposição de costumes, crenças e ciência a qualquer custo. O longa condena o hoje, o agora como um todo e não apenas o hoje ou agora dos chamados países imperialistas. Basta olharmos ao nosso redor com a visão correta, aberta, esclarecida, para perceber que cometemos e continuaremos a cometer os erros do passado.

A Costa do Mosquito (The Mosquito Coast – EUA, 1986)
Direção: Peter Weir
Roteiro: Paul Schrader (baseado em romance de Paul Theroux)
Elenco: Harrison Ford, Helen Mirren, River Phoenix, Conrad Roberts, Andre Gregory, Martha Plimpton, Melanie Boland, Dick O’Neill, Jadrien Steele, Hilary Gordon, Rebecca Gordon, Alice Heffernan-Sneed, Jason Alexander, William Newman, Aurora Clavel, Butterfly McQueen
Duração: 117 min.

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