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Crítica | A Dama e a Criatura, de Mallory O’Meara

A criadora por trás da criatura de "O Monstro da Lagoa Negra".

por Roberto Honorato
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Quando falamos de biografias literárias, há diversos caminhos que um autor pode seguir, mesmo que na maioria das vezes siga a estrutura básica de narrar os eventos do objeto de pesquisa de forma cronológica, o que não é um problema, embora talvez seja mais envolvente se a leitura trouxer algo além disso, não só na forma, mas no próprio texto, e Mallory O’Meara procura uma abordagem mais informal e contemporânea para explorar a história de uma das figuras mais intrigantes da indústria cinematográfica, mas que precisa ser descoberta pelo público, e é essa a proposta da autora.

Todo entusiasta apaixonado pelo cinema de horror, principalmente aqueles clássicos do estúdio Universal, conhece suas adaptações de monstros icônicos, como o Drácula de Bela Lugosi, ou a criatura de Frankenstein, interpretada por Boris Karloff, e um dos mais assustadores, porém adorados, é a criatura anfíbia que protagoniza O Monstro da Lagoa Negra. O filme merece ser reconhecido como um clássico, com um enredo que pode ser “simples”, mas boas atuações e a ótima direção de Jack Arnold (Veio do Espaço). O filme rendeu continuações e diversos outros filmes similares que se inspiraram principalmente no visual da criatura, entre eles o cineasta Guillermo Del Toro, que fez sua própria versão no longa A Forma da Água.

Entrando no debate sobre curiosidades e mistérios de bastidores do cinema, há uma dúvida sobre o responsável pela concepção e construção da criatura de O Monstro da Lagoa Negra, e a intenção da autora Mallory O’Meara é revelar que a verdadeira artista responsável pelo design do monstro é Milicent Patrick, uma talentosa animadora que teve grande presença na construção de algumas criaturas e segmentos animados icônicos da indústria, como a belíssima sequência do demônio Chernabog no clássico da Disney, Fantasia. Contudo, mesmo uma mulher tão talentosa quando Milicent Patrick não consegue fugir dos obstáculos de uma Hollywood conservadora da década de 1950, dominada por homens em quase todo departamento. Como aconteceu com muitas outras mulheres, seu legado foi quase apagado e foi difícil para O’Meara descobrir mais sobre a vida pessoal da designer e os seus trabalhos, ainda mais considerando que ela não foi creditada em muitos deles. 

Por conta disso, a pesquisa da autora foi dificultada pela escassez de material publicado sobre a designer de monstros, e ela decide trabalhar a partir de fragmentos na tentativa de contar um pouco da vida e obra do seu objeto de pesquisa, mas felizmente, aos poucos passa a encontrar informações importantes para completar o quebra-cabeça de Patrick. Esse esforço de pesquisa de O’Meara é, até certo ponto, o elemento mais interessante da leitura, com entrevistas e descoberta de documentos que enriquecem o livro, então a investigação jornalística da autora consegue ser um grande atrativo por conta das conexões e referências que surgem por conta disso.

O trabalho de pesquisa de O’Meara seria o suficiente para transformá-lo em um documento histórico importante para o cinema, e a história de Millicent é envolvente, mas chegamos na parte em que eu preciso admitir não ter gostado da leitura. Se considerarmos apenas as revelações sobre Patrick isoladamente, já temos um arquivo de peso, mas ele é apenas um elemento de um livro que procura ser bem mais do que sua proposta inicial, mas raramente tem sucesso em tudo que se propõe. Como mencionei, a história de Millicent Patrick é um conto clássico de uma artista com enorme criatividade lidando com os obstáculos de uma indústria na qual não é reconhecida como merece e precisa lidar com os abusos de homens motivados por puro ego, mas quando falamos do texto de Mallory O’Meara, aí é outro assunto.

O entusiasmo da autora contribui para diversas referências e comentários relevantes de alguém que pesquisa e passou grande parte da vida consumindo filmes de horror, mas ao mesmo tempo que tenta contar a história de Patrick, A Dama e a Criatura parece muito mais um livro sobre a jornada de uma autora investigando uma figura importante de uma Hollywood clássica, com ênfase em “jornada da autora”. Em essência, não há problema em trazer os bastidores do autor e da construção do livro para a narrativa (isso funciona muito bem na estrutura curiosa da biografia de David Lynch, Espaço para Sonhar, por Kristine McKenna, por exemplo), mas O’Meara dedica tanto tempo para contextualizar eventos pessoais e introduções de personagens (amigos ou parentes, no caso) que perde o foco em vários momentos, criando conexões que não possuem qualquer relevância temática entre os tópicos para tentar justificar seus devaneios.

No começo é compreensível que grande parte do livro seja dedicado à ligações de familiares de Patrick com figuras públicas poderosas, como o magnata William Randolph Hearst, mas avançando nas páginas podemos ver o padrão da autora em se entusiasmar até demais em um assunto e mudar o rumo da conversa, como quanto passa a falar de outras criaturas do cinema que adora, depois passa de forma brusca e sem muita construção para debates sociais mais complexos envolvendo sexo e política, mas tratados de forma bastante superficial, muitas vezes através de alguma piada, como se não estivesse interessada em realmente debatê-los.

O que nos leva para o que pode se tornar o maior obstáculo para alguns leitores, a forma como a autora se utiliza de uma linguagem mais informal em alguns trechos, voltada para um público mais jovem (parece muito que os millennials são o principal alvo, com piadas envolvendo hashtags, frases de efeito e referências à piadas da internet), e como humor é uma das coisas mais subjetivas que existe, não é algo que estraga totalmente a experiência para todos, mas claramente distrai, o que pra mim não funciona.

Inclusive, a autora se utiliza bastante de notas de rodapé, e muitas vezes não é para entregar uma informação muito importante, mas alguma piada sobre um evento similar que tenha acontecido com ela, o que torna a leitura também repetitiva e por vezes eu me sentia assistindo um daqueles filmes de duas horas que poderia ser facilmente resumido em um curta-metragem. Talvez alguma editora mais atenta pudesse explorar o livro por outro ângulo, como se aprofundar nos paralelos entre a vida e carreira de Millicent Patrick e a arquiteta Julian Morgan, o que traria mais conteúdo e menos brechas para a autora se perder em sua jornada de escrita.

A Dama e a Criatura traz informações e relatos relevantes para elucidar o leitor sobre a figura de Millicent Patrick, seu enorme talento e impacto na história dos monstros de cinema, enfrentando os verdadeiros monstros que são a indústria de Hollywood e uma sociedade patriarcal. Embora tenha uma base forte com uma excelente pesquisa, o texto de Mallory O’Meara acaba se tornando um obstáculo com sua falta de foco e constantes tentativas de inserir humor em situações na qual não é bem-vindo.

A Dama e a Criatura (The Lady from the Black Lagoon – EUA, 2022)
Autor: Mallory O’Meara
Editora original: Random House
No Brasil: DarkSide Books (26 de abril de 2022)
Páginas: 368 

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