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Crítica | A Dança da Realidade

por Luiz Santiago
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Em 1990, o diretor chileno Alejandro Jodorowsky, natural de Tocopilla, lançou o filme O Ladrão do Arco-Íris. Dali para frente seria uma longa jornada de 23 anos de afastamento das câmeras, onde ele se dedicou aos quadrinhos, fazendo as continuações da soberba série O Incal; à poesia, ao teatro e à prosa, publicando em 2001 o seu livro de memórias La Danza de la Realidad, segundo o autor, “um exercício de autobiografia imaginária“. Por esta definição, Jodorowsky quis dizer que todos os eventos colocados no livro — e, consequentemente, neste filme; que não é uma adaptação, mas uma versão de suas memórias, criada para o cinema e que ele pretende concluir com mais alguns longas — são fatos de sua vida, mas explorados de maneira fantasiosa, surreal, exagerada ou onírica, muitas vezes com a leitura que ele, homem adulto, escritor, cineasta, faz daquilo que aconteceu a partir de sua adolescência.

Depois de vinte e três anos, é natural que as ambições e estilo de um diretor sejam modificados ou ganhem outro foco, outra força, coisa que acontece claramente neste filme-retorno de Jodorowsky ao cinema. Aliás, sua abordagem já tinha passado por um grande reboliço de A Montanha Sagrada (1973) para Tusk (1980), mas aqui as mudanças são ainda maiores. E o seu cinema novamente faz a sétima arte vibrar, lembrando-nos um pouco de cineastas criativos, ousados, simbólicos, poéticos e coloridos como Sergei Paradjanov, por exemplo, criando portas metafóricas, poéticas, líricas e críticas em diversas áreas, direcionadas a distintos grupos sociais.

Ao mesmo tempo que não é um filme fácil, para todos os públicos e para todos os gostos, A Dança da Realidade tem o benefício da linearidade bem utilizada, mesclada aos símbolos, aos “exageros de memória”, à poesia visual do diretor, fazendo toda a diferença para o público, que não precisa criar uma linha — qualquer que seja — para melhor abstrair os significados do filme. E eu nem levanto isto para dizer que narrativas mais livres, como o já citado A Montanha Sagrada ou mesmo a obra-prima do diretor, El Topo (1970) são “deficientes” por conta de sua soltura. A questão é que dado um espaço, um tempo e um tema central, independente do que estiver no meio, a plateia conseguirá ao menos se apegar a algo, dando maior suporte para uma leitura, que é basicamente o que fazemos na maioria dos filme de diretores que mesclam estilos, mundos e experiências, como David LynchGreenaway e o próprio Jodorowsky.

Há uma série de motivos de construção moral, ética, religiosa e política de “Alejandrito” no desenvolver do filme, assim como a sua relação mista de religião, construções sociais e questões edípicas (sua visão da mãe é sempre divina… notem que ela não fala, ela canta!), ligadas a uma aura de milagre que afeta toda a família, mesmo o pai comunista, admirador de Stálin e que não acredita em Deus. Quase marcando passo em um jornada do herói, o diretor nos mostra a maior parte do tempo o amadurecimento de Alejandro (Jeremias Herskovits) através de figurinos e música; sua relação mais dócil com o mundo e o trato tirano do pai, a quem faz de tudo para agradar, mesmo que seja atender a maus tratos para “mostrar que é homem”, temática que será desenvolvida com muito mais força no filme seguinte, Poesia Sem Fim (2016).

Imigrante, judeu, comunista, ateu, Jaime (Brontis Jodorowsky) será colocado à prova na parte final da fita, que mesmo guardando muito do apuro estético de antes — e concentrando alguns dos melhores momentos da fotografia em todo o filme — acaba sendo um desvio longo demais, afetando negativamente a narrativa geral. Entendemos que Jaime passou por alguma mudança como pai, embora a sua fixação pela sexualidade do filho deverá ser um problema e tanto adiante. Mas tendo sido torturado, sofrido um trauma por não ter conseguido matar Carlos Ibáñez del Campo (em seu primeiro mandato, pois ele retornaria à presidência do Chile entre 1952 e 1958) e depois, tendo se dado conta de que Stálin, Ibañez e ele, Jaime, eram iguais, o personagem definitivamente teve diante de si um outro mundo para considerar e sua mudança como pessoa, mesmo que temporária — isto se revelaria no filme seguinte — é o resultado imediato deste processo. E claro, ele também serve nesta fase como uma tela para o diretor nos mostrar as mudanças de certos grupos da sociedade, que muitas vezes sofrendo e atrofiando-se, ainda mantém certos tipos de pensamento “em nome da ordem e da tradição“, como se estivesse lhe trazendo algum bem.

A Dança da Realidade é a forma como Alejandro Jodorowsky nos mostra a vida passando e o mundo se transformando pelos olhos de um adolescente, onde muitas coisas são mágicas, surreais, heroicas, místicas, medonhas, impossíveis. Seu encontro com Teósofo (de theosophia, ou “conhecimento de deus”), seus encontros com diversos tipos de pessoas na sociedade, sua passagem traumática como mascote do Corpo de Bombeiros… todas essas fases serviram como impulso para ele querer desconstruir por completo o mundo que o cercava. Seu futuro encontro com a arte, como é na maioria das vezes para pessoas que vêm de meios opressores, seria uma válvula de escape e um jeito que encontraria para mudar, para bagunçar a ordem e a tradição que tanto o massacraram, podaram e lhe impediram de ser quem ele era. Bela e trágica, a dança da realidade para Alejandrito é tal qual a dança realidade para qualquer ser humano. Fazer crescer uma semente nunca é fácil. O fruto que vem depois, já é uma poesia sem fim.

A Dança da Realidade (La danza de la realidad) — França, Chile, 2013
Direção: Alejandro Jodorowsky
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Elenco: Alejandro Jodorowsky, Brontis Jodorowsky, Pamela Flores, Jeremias Herskovits, Bastián Bodenhöfer, Andres Cox, Adan Jodorowsky, Axel Jodorowsky, Alisarine Ducolomb, Sergio Vargas, Patricio Bambrilla, Juan Quezada, Adrián Salgado, Eugenio Morales, Italo Tai
Duração: 133 min.

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