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Crítica | “A Day at the Races” – Queen

por Luiz Santiago
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A Day at the Races (1976) é um álbum de grande azar e de grande sorte. Azar, porque foi lançado na sequência do estrondoso e inigualável A Night at the Opera (1975), e por isso mesmo, sempre foi comparado com seu antecessor, muitas vezes inadvertida e gratuitamente. Mas é justamente aí que surge o ponto de sorte e o paradoxo. Porque a comparação, algumas vezes, coloca A Day at the Races como uma continuação musical de seu antecessor, algo que, excluída a aparência negativa que muitos utilizam ao determinar isso e o que a própria ideia quer passar, é justamente o que temos aqui. Um álbum que, pela primeira vez na carreira do Queen, não rompia com seus próprios padrões estabelecidos, mas estendiam (vejam que eu não escrevi “copiavam”) o que houvera sido posto em A Night at the Opera.

Algo que pode ajudar a muita gente que se ressente de A Day at the Races por não ser um A Night at the Opera 2 (o que em partes defendia Dave Marsh quando deus 2 estrelas para o disco em sua crítica para a Rolling Stone, publicada em fevereiro de 1977) é deixar de querer que o segundo espelhe o primeiro e passar a vê-los como irmãos gêmeos. Porque o próprio Queen, em dado momento da produção do disco — basicamente após o gigantesco show gratuito que deram no Hyde Park, em Londres, em 18 de setembro de 1976 — se deu conta de que era exatamente isso que estavam fazendo. Uma “outra face” do disco lançado no ano anterior.

E vejam que eles assumiram claramente esse ponto, nomeando o disco com o título de outro filme dos irmãos Marx, mas não qualquer filme. A escolha de Um Dia nas Corridas (1937) foi justamente para estabelecer o contraponto com o período do dia e a atividade em questão: noite versus dia / ópera versus corridas. E não bastasse isso, temos a intenção repetida na arte das capas, como vocês podem ver abaixo.

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A Night at the Opera (o filme e o disco). Observem que a capa do álbum do Queen é branca, apesar de estarmos falando de “noite”. Vejam a disposição e o modelo dos leões e as fadas voando na parte de baixo do ‘Q’.

As gravações de A Day at the Races começaram em julho de 1976. A essa altura, o Queen já tinha conseguido o seu lugar no ponto mais alto no Olimpo das bandas e prepara um álbum que não tinha vergonha de mostrar o “exagero” e a sua diversidade deliberadamente espalhafatosa. Isso os colocou na mira negativa de alguns críticos, que esperavam ou a repetição do monumento inovador que o antecedeu ou a incursão do Queen na então nascente onda do Punk Rock, especialmente porque de cara houve um arranca-rabo com os Sex Pistols, surgido após uma dura entrevista dada por Mercury à revista NME, que saiu com o título “Esse cara é um bundão?“. Os integrantes do Queen foram chamados de “alienados” e, de repente, a imprensa (especialmente a britânica) se esquecera de que até pouco tempo eles estavam tomando pedradas e tentando alcançar um lugar ao sol. Chegaram a dizer que eles eram apenas um hype e que seriam destronados tão logo os primeiros trabalhos de estúdio das bandas genuinamente punks viessem à tona.

Fato curioso é que no ano seguinte, enquanto o Queen gravava News of the World (1977), eles estiveram no mesmo estúdio que os Pistols, que gravavam o álbum Never Mind the Bollocks, Here’s the Sex Pistols. Ao entrar na sala-estúdio do Queen, Sid Vicious perguntou, referindo-se ao que Mercury disse na entrevista à NME: “Você é o tal Freddie Platina, que quer levar o balé para as massas?“. Freddie riu e respondeu: “Ah, Mr. Ferocious! Fazemos o melhor que podemos, querido!“. Ao que parece, esse foi o “fim” da contenda (na verdade, não foi: Mercury chegou a pegar Vicious pela gola de jogá-lo longe), mas uma alfinetada veio com a gigante crítica política no primeiro álbum dos Pistols, que tem como faixa 4 a polêmica God Save the Queen, que dá o tratamento oposto ao que o Queen dava à rainha…

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A Day at the Races (o filme e o disco). Observem que a capa do álbum do Queen é preta, apesar de estarmos falando de “dia”. Vejam como muda a abordagem da parte central da capa, inclusive o chão. Indicação de um disco menos “etéreo” que o anterior?

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LADO A 

Como que provando a ideia siamesa entre A Day at the Races e A Night at the Opera, temos como primeiríssima canção uma hard rock de Brian May intitulado Tie Your Mother Down, que pela divertida (mas não cruel) letra, ecoa a ideia rebelde de Death on Two Legs, que abriu o disco anterior. E não havia escolha melhor. Além da já apontada rebeldia que temos na letra, há nuances de blues que fazem a mistura viva e deliciosa aos ouvidos. O modelo de “quase-balada + sessões de solo” cai bem à composição, que é estruturalmente simples, mas marcante o bastante para voltar ao final do disco, nas últimas frases musicais de Teo Torriatte (Let Us Cling Together), fechando o ciclo.

Se prestarmos bem atenção na intro de Tie Your Mother Down, veremos que existe uma frase, uma sequência musical que não se resolve. Ela é interrompida bruscamente pela entrada de May com seu riff principal, acompanhado do baixo, da bateria e dos vocais onomatopeicos de Mercury. É como mudar repentinamente de pensamento, de humor, que é exatamente o que acontece na passagem desta para a canção seguinte, a balada ao piano You Take My Breath Away. Em muitos sentidos, ela segue uma linha de composições esmagadoramente primorosas de Mercury, como sua antecessora Love of my Life e sua sucessora My Melancholy Blues.

Existem algumas teorias a respeito da “dedicatória” de Mercury para esta canção, mas, sem querer entrar na onda de “ele fez essa música para…” é mais proveitoso observar que, para quem quer que tenha sido, era algo bastante pessoal para o cantor. Ele gravou sozinho todas as tonalidades vocais, além de ter tocado o piano e liderado os vocais em estúdio. A divisão da introdução a cappella seguida de blocos e pontes musicais em escala menor torna You Take My Breath Away uma faixa profundamente melancólica, no sentido reflexivo da palavra. É como um olhar para si mesmo, quando tomado de amor por alguém.

Long Away traz os agradáveis vocais de Brian May, que, por um milagre, separa-se um pouco de sua personalíssima Red Special e utiliza principalmente um violão de 12 cordas, embora utilize a RS no pequeno solo da canção. Por mais que queira afastar-se das comparações com ’39, não tem jeito, há uma semelhança considerável entre as canções. Ambas são folk-rock, mas Long Away é dezenas de vezes mais leve, um tantinho mais repetitiva e tem uma linha de baixo melódica que dá o tom de falsa alegria da canção, negada pelo pequeno desencanto da letra.

The Millionaire Waltz, a penúltima faixa do Lado A, é o ponto alto de A Day at the Races. Escrita sobre e para John Reid, na época, administrador do Queen e de Elton John, a canção pega carona na multi-forma, multi-tonalidade e multi-ritmo de Bohemian Rhapsody, com variações métricas simples (3/4 e 4/4) para variações menos simples ou andamentos bastante curiosos e deliciosamente encaixados nos esquetes musicais, como 9/8 e 15/8. É uma faixa extremamente bem produzida – faz parte do TOP3 da alta produção do disco, seguida de Good Old-Fashioned Lover Boy e Somebody to Love – e é um ajuntamento melódico de valsa, balada e rock com diálogo em arpejos com o baixo. A letra é uma espécie de brincadeira sobre uma “triste realidade”, com direito a coro de apoio e trechos com sotaque em alemão à maneira de Marlene Dietrich (“My fine friend / Take me with you and love me forever / My fine friend / Forever”). E para completar, as chaves em meio-tom ecoam bases de Nevermore, lá de Queen II. É muita coisa boa em uma faixa só para não ser a melhor do álbum, não acham?

Este lado do disco termina com a excelente You and I, de John Deacon, a única canção dele em A Day at the Races. Há trabalhos elementares de piano, violão e baixo acústico que dão um sabor extra de afeição à faixa, sem contar no uso simples e marcante da Red Special de May em alguns trechos da canção (nas variações da primeira e segunda pontes, utilizando padrões clássicos, do tipo visto em Killer Queen). Além de fechar bem esse bloco, a música se mostra um bom par para outra canção de Deacon: You’re My Best Friend.


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LADO B 

Somebody to Love é provavelmente a canção mais conhecida de A Day at the Races e aparece sempre no TOP10 das melhoras da banda. O esforço empregado na produção da faixa tem inspiração direta no gospel de Aretha Franklin e traz uma composição vocal de sobreposição de vozes que chegam a 100 variações, a maioria delas gravadas por Mercury, May e Taylor. John Deacon aparece apenas na parte mais grave, na segunda parte da canção, e segue com pontuais participações em trechos até o final. Roy Thomas Baker deve ter sentido uma pontinha de inveja ao ver que a banda estava fazendo canções tão complexas sem tê-lo como produtor. Após encerrado o contrato de 4 álbuns que tinham assinado, ele e o Queen se separaram amigavelmente e A Day at the Races foi o primeiro disco produzido inteiramente pelo quarteto, tendo como engenheiro de som o habilidoso Mike Stone, que “roubaram” da Trident, com quem tinham rompido em Sheer Heart Attack.

Em White Man Brian May faz (mais uma) música muito inteligente, dessa vez, de cunho sociopolítico/cultural, mostrando o ponto de vista dos índios para a chegada do europeus. É [possivelmente] a canção mais pesada do Queen, com sessões de vocais criando dois grandes ciclos (o último com extensões em delay em um álbum da banda) e uma variação que pertence à introdução e volta a aparecer, reformulada, no desfecho, levando-nos para a imediata voz-e-piano de Mercury, sem introdução, na complexa e excelente Good Old-Fashioned Lover Boy, que volta à variação de coros (agora com uma harmonia mais “metálica”, vide os versos “Hey boy, where do you get it from? Hey boy, where did you go?”) e um solo de guitarra isolado que é guiado estruturalmente pelo piano e bateria + cadência rítmica de musichall.

A “tetralogia de canções vaudeville”, de Freddie Mercury, formada por Bring Back That Leroy Brown (ecoando as The Pointer Sisters), Lazing on a Sunday Afternoon, Seaside Rendezvous e, neste álbum, Good Old-Fashioned Lover Boy, termina com as marcas mais notáveis do Queen: arranjamentos versáteis e viciantes, um solo de guitarra adaptado especialmente para o [sub]gênero e uma letra que só é simples na aparência.

Drowse é a penúltima faixa do disco e deu um trabalhão para Roger Taylor, seu compositor, que liderou a percussão, os vocais e pequenos detalhes sonoros gravados à parte e adicionados depois. É um gigantesco passo em termos de qualidade para ele, que normalmente não compunha as melhores faixas, mas esta é realmente muito boa. O alcance vocal é ideal para a tessitura dele, portanto, não o vemos gritar desnecessariamente e dá uma atmosfera road sensacional à canção. É o tipo de música que você gosta de ouvir dirigindo sozinho, por uma rodovia — e o Queen tem outros exemplos perfeitos para “viagens solitárias”, por sinal.

Por fim, o agradecimento em forma de música, diretamente de Brian May (e do Queen, em geral) para seus fãs japoneses, Teo Torriatte (Let Us Cling Together). Trata-se de uma entre três canções do Queen cantadas em uma língua que não o inglês (futuramente viriam espanhol, árabe e persa). A canção tem o formato de “hino” e não só demonstra o carinho do Queen pelo Japão, país onde sempre foram muitíssimo bem aceitos, mas também pela cultura japonesa na estrutura pacífica da canção, indo de tons menores para um coro otimista e, ao final, para algo mais abrangente e com mais vozes, como se o Queen estivesse abraçando o mundo. É uma bela canção — embora eu entenda os que não gostam dela — e termina o álbum com um sentimento de grupo somado ao mesmo tema ouvido na introdução de Tie Your Mother Down. O “outro gêmeo” chega ao final da jornada.

A Day at the Races marca o fim de algumas escolhas do Queen (como as canções vaudeville de Mercury) e coloca a banda frente ao desafio de manter sua identidade livre de exatas classificações, na era do punk e de uma renovação no rock que a metade final da década de 1970 iria conhecer. A partir daqui, as coisas mudariam estilística e estruturalmente na produção musical da banda. Enfim, eles perceberiam ser deuses tinha um alto custo.

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Nota sobre fontes: eu traduzi trechos de informações em entrevistas com os membros da banda para diversas redes de TV e rádio ao longo dos anos; compilei informações técnicas específicas expostas no livro Queen – História Ilustrada da Maior Banda de Rock de Todos os Tempos, de Phil Sutcliffe (e também de encartes de CDs, documentários de DVDs e livros que acompanham os boxes Especiais da banda); trouxe diversas informações sobre decisões ou discussões de bastidores, processo de criação das músicas, uso específico de instrumentos, descrição de cenas da produção dos discos, estilos ou comparações entre canções de diversas Eras da banda através de um processo criativo de caráter biográfico do documentário Queen – Days of Our Lives e também de artigos em diversas páginas ligadas à banda, aos estúdios e principalmente aos produtores dos discos.

Aumenta!: Somebody to Love
Diminui!:
Minhas canções favoritas do álbum: You Take My Breath Away   The Millionaire Waltz

A Day at the Races
Artista: Queen
País: Reino Unido
Lançamento: 10 de dezembro de 1976
Gravadora: EMI, Parlophone
Estilo: Rock, Hard Rock

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