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Crítica | A Divina Comédia (1991)

por Marcelo Sobrinho
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Em um cinema tão marcado pela reflexão sobre a condição humana e nosso eterno embate com o caos que nos governa, não é de se admirar que uma das maiores obras-primas do português Manoel de Oliveira seja tão recheadas de citações filosóficas, literárias e religiosas. Quando o renomado diretor lusitano lançou, em 1991, o seu belíssimo A Divina Comédia, enganou-se completamente quem imaginou que ele apenas (se é que o advérbio realmente caiba aqui) adaptaria a obra homônima de Dante Alighieri. No longa-metragem do português, não há Paraíso, Inferno e Purgatório, como na monumental obra do italiano. Manoel de Oliveira parece optar por seu título mais como uma pista falsa, a fim de surpreender seu público com uma obra mais ao sabor niilista, com forte tom dostoievskiano e nietzscheano. O que se vê na tela é um simples manicômio, gerenciado pelo próprio criador e no qual todos os alienados nada mais são do que tipos humanos por excelência. Essa divina farsa talvez seja ainda mais humana.

Por meio de planos longos e estáticos, que fornecem algo fortemente teatral às interpretações de todo o elenco, Manoel de Oliveira promove a improvável reunião de personagens históricos e ficcionais a fim de examinar pontos cruciais da reflexão da humanidade sobre sua própria condição. O português constrói algo como um compêndio filosófico de questões nevrálgicas da nossa existência e que, possivelmente, afligiam a ele mesmo. Dessa forma, os longos diálogos entre o Profeta e o Filósofo parecem recriar a expandir o entrechoque eterno entre a perspectiva religiosa do mundo e a niilista, que encarna todo o discurso nietzscheano sobre o eterno retorno, a vontade de potência e o übermensch. A fé com que o primeiro segura e ergue o proclamado quinto evangelho em tudo se opõe ao cinismo insistente com que o segundo desfere seus ataques. Apolíneo e dionisíaco dialogam nos campos e contra-campos de Manoel de Oliveira.

O cineasta português também demonstra habilidade em manipular ângulos e perspectivas na cena em que recria o crime de Raskolnikov – personagem icônico de Crime e Castigo. Toda a reflexão do jovem russo acerca da grandeza do homem e de sua moral parece se materializar em uma cena quase onírica, delirante, tornando o quarto onde ocorre o delito bastante claustrofóbico e amedrontador. A cena é possivelmente uma das melhores de toda a filmografia de Manoel de Oliveira. A personagem Sônia, da mesma obra dostoievskiana, se junta a Raskolnikov e aos demais alienados desta divina comédia para tratar de uma das ideias mais fulcrais para a moral cristã – a do pecado e da redenção. Ninguém melhor do que a prostituta russa para explorar a beleza humana sob o ponto de vista de sua imperfeição. A questão do pecado surge ainda mais clara nas figuras bíblicas de Adão e Eva, cuja transgressão primeva é assistida pelos alienados da janela do manicômio. Todos legatários de seu pecado.

Manoel de Oliveira inevitavelmente toca no tema da salvação da humanidade, seja por meio da fé ou da razão. As discussões de A Divina Comédia vão longe. A arte surge como possibilidade de redenção e é disputada pelos discursos religioso e ateísta (nietzscheano). Outra via é enunciada pelo casal de Crime de Castigo, que encerra tão bem a ideia do escritor russo de que o sofrimento redime. Mas Manoel de Oliveira é bastante inteligente quando atualiza a parábola do Grande Inquisidor, da obra Os Irmãos Karamázov, para refletir sobre essa temática. Um dos momentos mais célebres da literatura mundial ganha a possibilidade de transitar entre o pessimismo de Ivan no futuro de uma humanidade cada vez mais dividida até a celebração ecumênica do amor entre os homens, que coaduna com o pensamento de Aliocha. É belíssima a criação do cineasta português na conclusão de sua obra. A esperança lançada se materializa no beijo que os personagens se dão – provavelmente a demonstração afetiva mais universal da humanidade.

Manoel de Oliveira faz em sua obra de 1991 talvez uma síntese de seu próprio pensamento e suas preocupações filosóficas mais urgentes. Mesmo tendo filmado até o fim da vida, produzindo obras ao longo dos anos seguintes tão boas quanto esta, penso que A Divina Comédia oferece uma rara possibilidade de compreensão de seu cinema. Se tivesse sido o seu canto do cisne, não teria dúvidas em afirmar que teria deixado um incrível testamento cinematográfico. Só nos resta agradecer que homens como ele sejam capazes de produzir em tão alto nível até o fim da vida.

A Divina Comédia – Portugal, 1991
Diretor: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira
Elenco: Luis Miguel Cintra, Mário Viegas, Miguel Guilherme, Maria de Medeiros, Cremilda Gil, Luis Lima Barreto, Manoel de Oliveira, Paulo Matos, Miguel Yeco, Júlia Buisel
Duração: 139 minutos

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