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Crítica | A Época da Inocência

por Luiz Santiago
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Os anos 1990 começaram com os olhos voltados para o diretor Martin Scorsese. Primeiro, com o lançamento do inesquecível Os Bons Companheiros (1990). Depois, com o intenso Cabo do Medo (1991), e então, com um filme de época que ele já há algum tempo pretendia fazer. Tendo contato com a obra de Edith Wharton e em conversas com seu amigo Jay Cocks, com quem havia colaborado em um pequeno documentário sobre Giorgio Armani, em 1990 (Made in Milan), Scorsese assumiu o projeto que se tornaria A Época da Inocência, um romance ambientado na Nova York da década de 1870 (avançando para o século XX, no final do filme), mostrando outro tipo de violência, as massacrantes convenções sociais e as renúncias que forçam algumas pessoas fazerem, tendo uma vida infeliz apenas para agradar a família, aos vizinhos, ao grupo social do qual fazem parte.

Dedicado a Charles Scorsese, pai do diretor falecido pouco antes de o filme ser finalizado, A Época da Inocência mostra Newland Archer (Daniel Day-Lewis, em uma contida e poderosa atuação), jovem advogado de mentalidade liberal, em particular, mas defensor das tradições em público; que está noivo de May Welland (Winona Ryder, mostrando um ar inocente e sempre tão feliz de sua personagem — ou fingindo-se feliz — que parece abobalhada), membro de uma importante família da aristocracia americana. Embora criados em uma sociedade de aparências e bastante exigente em relação ao comportamento de seus indivíduos, os dois sabem muito bem que este mundo não é exatamente tão perfeito quanto mostra ser. Ocorre que Newland consegue ver tonalidades diferentes, opções de vida e desafio às tradições, algo que May jamais poderia conceber.

Após uma lírica e sugestiva sequência de abertura, realizada por Elaine e Saul Bass (este último, responsável por sequências de títulos em obras como Um Corpo Que CaiDa Terra Nascem os Homens, PsicoseIntriga InternacionalSpartacusAmor, Sublime Amor, além dos outros dois filmes anteriores de Scorsese naquela mesma década), temos uma cena da ópera Fausto, de Charles Gounod, onde uma série de deixas sobre aquela sociedade nos são dadas. Notícias de escândalo pela chegada da Condessa Olenska (Michelle Pfeiffer, reunindo características bem diversas em uma interpretação que mostra uma mulher atormentada pela sociedade, uma mulher cheia de desejo — e por isso bastante sexy, sem nenhum elemento de vulgaridade ao demonstrar isso — e também alguém preocupada com a família e com as pessoas de quem gosta, mesmo que algumas vezes não pareça) e comentários maldosos ou sugestivos são observados. A narração nos deixa a par de tudo, guiando-nos pelo filme inteiro. De maneira muito breve, vemos formar-se o triângulo amoroso entre Newland, May e Olenska. A luta para alcançar a felicidade e as dificuldades do amor vêm à tona.

Não é muita novidade o fato de Scorsese ter atrasado a pós-produção da obra, tendo passado muito tempo ao lado de sua editora Thelma Schoonmaker (com quem trabalhava desde Quem Bate à Minha Porta?), procurando a melhor versão final da montagem para o filme. E não é para menos. A teia de amores evidenciada pelo diretor, mais os maneirismos sociais que a todos afetam, exigiam uma escrupulosa interação entre os blocos dramáticos, que passam por momentos de frustração de planos, perseguição de interesses que não encontram apoio de ninguém ao redor e a final resignação em prol da felicidade alheia. Há um nível de crueldade bem grande na temática, que não é nova e nem ganha uma versão grandiosa dos roteiristas (os diálogos do miolo do filme, a narração-guia e a manutenção dos personagens sofrendo em seu próprio tempo, sem grande arco de amadurecimento, são exemplos de pontos baixos do texto, que também ganha impasses na montagem, fazendo-nos perder o interesse algumas vezes), mas mostra muito bem a violência psicológica que fez o diretor afirmar que este é o seu filme “mais violento”.

O uso da trilha sonora, que tem maior impacto do meio para o fim da película, onde os sentimentos vão sendo cada vez mais massacrados, chega a um final poético, com Newland aos 57 anos, maduro e talvez sem ânimo para perseguir ou encontrar um antigo sonho. Isso também pode ser visto pela inteligente escolha de evolução do figurino para todos personagens, o que garantiu o Oscar a Gabriella Pescucci (Era Uma Vez na América, A Fantástica Fábrica de Chocolate, Penny Dreadful) e na excelente fotografia cheia de climas e mudanças de cor e textura/atmosfera dos ambientes dentro de uma mesma cena, indicando momentos de nova percepção ou choque dos personagens, mais um notável trabalho de Michael Ballhaus (O Casamento de Maria Braun, A Última Tentação de Cristo, Os Infiltrados).

É compreensível que o diretor e Thelma Schoonmaker tenham optado por colocar o maior número de cenas possíveis que mostrassem como a hipocrisia da sociedade afeta as pessoas, que deixam de viver suas vidas para viver a vida idealizada por seus pais, empregadores e classe social. Nesse sentido, a obra é bastante competente, porque nos faz sentir paulatinamente essa situação crescendo e tornando-se norma, chegando, inclusive à sua “versão moderna”, com gritos de defesa das tradições, mascarando aí todo tipo de liberdade individual cortada.

Embora mais longo do que deveria e negativamente impactado por isso, A Época da Inocência mostra a habilidade de Scorsese em dirigir histórias fortes, independente do gênero. Talvez a obra tenha sido subestimada ao longo dos anos, não necessariamente por sua composição estética ou direção, mas pela pouca lapidação roteiro e questionáveis escolhas finais da montagem. Ainda assim, o filme é marcante, e sua temática, infelizmente, permanece atual, onde muita gente é tornada infeliz em nome de raízes sociais que serviram à uma época, mas que se recusam a mudar, forçando todos a se enquadrarem em suas caixas comportamentais. E ainda há quem acredite que este é sim o ideal de um mundo belo, correto e moralmente aceito. “A Época da Inocência” ainda existe para muita gente em pleno século XXI.

A Época da Inocência (The Age of Innocence) — EUA, 1993
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Jay Cocks, Martin Scorsese (baseado na obra de Edith Wharton)
Elenco: Daniel Day-Lewis, Michelle Pfeiffer, Winona Ryder, Richard E. Grant, Alec McCowen, Geraldine Chaplin, Mary Beth Hurt, Stuart Wilson, Miriam Margolyes, Siân Phillips, Carolyn Farina, Michael Gough, Alexis Smith, Kevin Sanders, W.B. Brydon, Tracey Ellis, Cristina Pronzati, Clement Fowler, Norman Lloyd
Duração: 139 min.

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