Home FilmesCríticas Crítica | À Espera dos Bárbaros (Waiting for the Barbarians)

Crítica | À Espera dos Bárbaros (Waiting for the Barbarians)

por Davi Lima
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Usufruindo da capacidade de tratar a fronteira entre as dimensões histórico-realista e dramático-cinematográfica, o diretor Ciro Guerra desprende-se da trama de redenção do homem bondoso e exercita reflexivamente com o espectador à espera pelos bárbaros que tanto os conquistadores buscavam punir. Dessa forma, não há obras redentoras no filme, e sim a reafirmação didática com a natureza, quiçá com a dimensão de desbravamento operístico do título, que o ser humano vê o reflexo imperfeito de si, nunca se salvando por suas boas ações, especialmente na pretensão de uma mediação incompreendida de cultura.

O protagonista interpretado por Mark Rylance (Jogador Nº 1, Ponte dos Espiões) é a simbologia clássica do gentleman, o homem cortês, britânico, com atitudes elogiáveis no falar singelo, na interação diversificada com o povo e no detalhismo com a escrita. Nessa sua cordialidade, impõe para si o papel de intermediador cultural, guardando e cuidando de materiais de escrita atribuídos aos “bárbaros” da região, enquanto serve como Magistrado, serviço de liderar um centro civilizatório conquistado e de papel político em meio a uma guerra. Essa descrição se torna relevante, tanto em imagem quanto em introdução, porque o diretor toma métodos didáticos na narrativa, buscando sempre centralizar distanciamentos geográficos e a ostentosa natureza da fotografia como sinônimos de dramatização. Conhecendo a personalidade pacífica do personagem central, permite-se o diretor teatralizar movimentos dos personagens e abrir planos na captação das imagens do filme, que pelo cenário vão questionar paulatinamente o bom porte de um representante dos conquistadores e de um homem de anseios próprios. O conflito é lento e da mesma forma é a compreensão de que também existe maldade naquele homem que parece não compreender a tortura.

Assim, o filme estabelece dinâmicas muito difíceis de harmonizar, com paralelismos de imagem em uma história já dividida didaticamente em estações de tempo, uma espécie de alívio cômico extremamente sutil que se exacerba em meio a momentos contemplativos de ações aparentemente redentoras do protagonista. A harmonia se dificulta porque são três maneiras de contar a história, que podem ser contraditórias ou óbvias. No entanto, há um esvaziamento do drama em falas e atuações, com um elenco de apoio com Johnny Depp e Robert Pattinson com trejeitos caricatos de vilania, permitindo o impacto da violência física dos conquistadores tornar-se as consequências reais da obra, não as ações bondosas do protagonista. Ou seja, para a coerência de quebrar a trama redentora de um oficial de fronteira diante dos seus superiores violentos, os paralelismos acompanham o protagonista em suas mudanças, de Mark Rylance ir do popular ao isolado na cidade de fronteira, enquanto a investigação dos superiores por bárbaros na cidade e arredores é a espera temporal incitada que de maneira didática as estações de tempo vão impactando exteriormente. 

Dessa maneira, o valor que Ciro Guerra dá à natureza e à compreensão geográfica sem necessidade descritiva, pertencente a um movimento realista, permite que a desestruturação do heroísmo das boas ações, e o questionamento delas, seja o próprio ato de fotografar o protagonista. Seu ato de sair dos muros da cidade em direção ao deserto, o cenário de livros e textos que pressionam o ator numa conversa com seu superior e sua submissão à entrada dos militares na cidade vão preparando a revelação de que o personagem central nunca foi bom, acochado em suas ações pela grandiosidade da natureza, pelo seu trabalho até o ponto de irresponsabilidade, e como tenta compreender os “bárbaros” pela própria lente de conquistador, embora mais pacífico. 

Mesmo que soe uma história repetitiva de desconstrução, ela se torna diferenciada pois assim como o detalhismo de ações do personagem em escrever, se movimentar ou falar, o diretor dá a percepção sonora do filme ao espectador também em detalhes, exatamente para que ao declarar a insatisfação com o protagonista, a exteriorização seja suficiente para a apreciação. Aí que as miniaturas de alívios cômicos no filme, e uma visão histórica do diretor em dar voz a personagens transeuntes na narrativa – como um soldado interpretado por Harry Melling (Dudley Dursley da franquia Harry Potter) que tenta descrever a vilania dos militares no uso de facas minúsculas para tortura, ou uma cozinheira interpretada por Greta Scacchi que, por ciúmes do protagonista, o questiona – viram uma denúncia à incapacidade de compreensão da tortura elaborada contra os bárbaros, ou o cuidado controverso do protagonista com uma garota do povo bárbaro. 

Os símbolos e o silêncio preservado nas imagens captadas do diretor vão tomando forma de afirmação do anseio do protagonista. Sua culpabilização não é apontada à vista, e sim no reflexo da sombra de um ser humano inapto em entender que ele estava no meio da guerra, não tomando um lado. Ele é engolido de qualquer forma, e nunca encontra um reflexo simbólico satisfatório, nem nos óculos de sol do Coronel, nem no olhar da garota torturada. Por isso não vemos Mark Rylance de maneira intimista. A imagem mais próxima dele é pelo reflexo simbólico dessas duas pessoas. O seu toque na face e no corpo da garota interpretada por Gana Bayarsaikhan é distante, é um ato de incompreensão, não de aproximação. 

A natureza narrativa do À Espera dos Bárbaros é a linguagem da espera, contraponto também às ações humanas, seja redentora (como a do protagonista), seja dos militares. Tudo se revela para eles, o medo, a falta de cavalos, a sombra reflexiva. Não sobra nada que revele um desbravamento ou alguma epopeia que o título poderia sugerir. É exatamente a pausa desse percurso que mostra com paralelismos a decaída de um vilão e uma constatação da incompetente mediação. O que sobra são os bárbaros, o deserto e os reais inocentes de uma guerra que não rende o homem, só evidencia a sua incapacidade de ser bom sozinho.

À Espera dos Bárbaros (Waiting for the Barbarians) – Itália| EUA – 2020
Direção: Ciro Guerra
Roteiro: J.M. Coetzee
Elenco: Mark Rylance , Johnny Depp , Robert Pattinson , Gana Bayarsaikhan , Greta Scacchi , David Dencik , Sam Reid , Harry Melling, Bill Milner.
Duração: 112 min.

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