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Crítica | A Espiã (2006)

O bom filho a casa torna.

por Ritter Fan
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Paul Verhoeven começou sua carreira na Holanda, dirigindo nada menos do que seis longas cinematográficos entre 1971 e 1983 que ajudaram a moldar a filmografia moderna de seu país. Por diversas razões, dentre elas a dificuldade de conseguir fundos e as críticas severas que recebeu por seu Sem Controle, o cineasta mudou-se para os EUA em 1985, com seu Conquista Sangrenta, o primeiro de sete filmes por lá, alguns considerados clássicos tecnicamente hollywoodianos, mas que são claramente frutos de seu estilo bem característico, como RoboCop, O Vingador do Futuro e Instinto Selvagem, com essa segunda fase durando até o ano 2000, quando ele lançou O Homem Sem Sombra.

Encontrando barreiras em seu país adotado muito semelhantes às com que ele se deparou em seu país de origem, Verhoeven fez, então, o movimento inverso, retornando à Europa para dirigir o drama histórico de guerra A Espiã, cujo roteiro ele e seu parceiro de sempre Gerard Soeteman já estavam escrevendo há tempos e que só conseguiram mesmo acabar ao trocar o protagonismo original masculino pelo feminino. O filme, que teve sérios problemas financeiros durante a produção, além de Verhoeven ter adoecido por um tempo, marcou, então, o retorno do filho pródigo à sua casa, sendo recebido com todas as honras.

A Espiã, como é logo indicado na abertura, é “inspirado em fatos reais”, mas essa afirmação, apesar de verdadeira, é também enganosa, já que a história contada não aconteceu como contada, pois ela é fruto da utilização de diversos eventos e personagens reais ou parcialmente reais não necessariamente conectados durante a Segunda Guerra Mundial que Verhoeven e Soeteman costuraram em uma narrativa una. Por exemplo, a protagonista, Rachel Stein, cantora judia que depois adota o nome Ellis de Vries (Carice Van Houten, a Melisandre de Game of Thrones) é baseada em Esmée van Eeghen, que fez parte da resistência holandesa, mas que acabou se notabilizando por se apaixonar por um oficial alemão. Van Gein (Peter Blok) que inicialmente organiza a fuga de Rachel da Holanda, é uma amálgama de duas pessoas reais, Ans van Dijk e Andries Riphagen e assim por diante.

O que quero dizer com isso é que, em larga escala, a história de A Espiã é original, ainda que, como foi o caso de Soldado de Laranja, este sim baseado em fatos reais, tenha a função de homenagear os heróis da Resistência. Mas homenagem, no livro de Paul Verhoeven, não é algo óbvio e maniqueísta, com mocinhos de um lado e vilões do outro, todos perfeitamente identificáveis. O que o diretor faz, aqui, é puxar as duas pontas desse espectro e encontrar um meio-termo para todos os personagens que povoam seu longa, mantendo-os dentro dos proverbiais tons de cinza. Rachel, de fugitiva, torna-se realmente espiã, entregando-se literalmente de corpo e alma a seu ofício para aproximar-se do capitão da SS Ludwig Müntze (Sebastian Koch) que, por sua vez, revela-se como um homem de princípios mesmo usando seu uniforme nazista. O mesmo pode ser dito de Gerben Kuipers (Derek de Lint), líder da resistência e Hans Akkermans (Thom Hoffman), o principal soldado, já que por diversas vezes ele agem motivados por razões puramente egoístas e não pelo bem comum.

E o roteiro é muito cuidadoso em manter esses tons de cinza não apenas como uma forma mais humana de caracterizar os personagens, mas também como um artifício muito inteligente para conservar um mistério que vai sendo lentamente trabalhando ao longo de toda a duração da fita. Esse é o primeiro filme do diretor que se vale dessa “pescaria” de incautos para manter o espectador grudado na tela, mas a verdade é que ele faz isso com extrema elegância, sem que nada pareça efetivamente forçado ou existente apenas com um fim em si mesmo. Por outro lado, a inserção dos mais diversos eventos pinçados da realidade cobra seu preço não só na duração avantajada da fita, como, por vezes, também na impressão de que a narrativa é episódica, quase que lembrando uma minissérie. O resultado disso é que o espectador sente a duração do longa, especialmente o dénouement alongadíssimo, mesmo que os eventos mantenham a curiosidade lá em cima quase que o tempo todo.

Felizmente, a atuação de Carice van Houten funciona como a cola que mantém as peças unidas mesmo quando o filme ultrapassa a duração ideal, com a atriz (e cantora na vida real também) convencendo tanto como a vítima de uma tragédia, como lutadora que não tem nada a perder, mulher inteligente que começa a montar as peças de um quebra-cabeça maligno e, também, que se apaixona perdidamente por quem jamais deveria se apaixonar. Nós sabemos de seu fim logo no começo da projeção em razão do artifício de emolduramento, que a mostra em um kibutz nos anos 50, mas mesmo assim é impossível descolar os olhos da tela até entendermos exatamente como ela conseguiu chegar lá.

A produção do filme que marcou o retorno de Verhoeven para a Europa – onde continua até hoje – foi decididamente conturbado e esses problemas externos talvez tenham contribuído para alguns dos probleminhas no longa, mas A Espiã é um filme que decididamente é um Verhoeven legítimo, onde nada é fácil e óbvio e tudo tem subtexto rico para ser lido com vontade pelo espectador. Não está entre as obras-primas do cineasta, mas foi outro ótimo acerto do holandês retornando à seu lar.

A Espiã (Zwartboek – Holanda/Alemanha/Reino Unido/Bélgica, 2006)
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: Gerard Soeteman, Paul Verhoeven
Elenco: Carice van Houten, Sebastian Koch, Thom Hoffman, Halina Reijn, Waldemar Kobus, Derek de Lint, Christian Berkel, Dolf de Vries, Peter Blok, Michiel Huisman, Ronald Armbrust, Frank Lammers, Matthias Schoenaerts, Johnny de Mol, Xander Straat
Duração: 145 min.

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