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Crítica | A Estrutura de Cristal (1969)

Zanussi conduz um culto poético ao bem viver.

por César Barzine
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Krzysztof Zanussi filma o contraste de dois homens que, no campo intelectual, são igualmente formidáveis; porém, no campo prático, vivem e pensam a vida de modos completamente diferentes. Marek vai até uma pacata região rural reencontrar, depois de anos, o velho amigo Jan, que vive ao lado de sua esposa. Marek expõe seu portfólio; estudou aqui, trabalhou ali, entre outras coisas do gênero. Jan não precisa dizer nada sobre si, já sabemos de tudo ao ver o seu entorno. Também não há o que se exibir, é apenas uma vida comum em um lugar comum com pessoas comuns. Tudo isso deixa Marek meio abismado. Como um homem excepcional vive de forma tão ordinária?

Temos aqui um trabalho, à sua maneira, existencialista. Mas o que esperar de um filme existencialista? Podemos esperar uma ou mais questões subjetivas conflitando dentro de um indivíduo, ou que as questões subjetivas se entrelaçam em duas ou mais pessoas de maneira não muito unidimensional. A Estrutura de Cristal é uma produção existencialista diferente. Trata-se de uma obra maniqueísta que impõe um contraste bem enfático entre duas figuras com questões dicotômicas. Não o bem x mal, e sim a virtude x desvirtude — sendo este antagonismo ainda pautado na subjetividade, não na moral. É como se fosse um tratado helenístico; isto é, a procura do bem viver e da busca espiritualizada na realidade imanente. 

É uma obra sobre a afirmação da vida não levantada pelo triunfo glorioso, mas sim pela pequenez e simplicidade das coisas. A Estrutura de Cristal nos apresenta um mundo epicurista, manifestado na vida comunitária, no cultivo dos afetos, nos prazeres bucólicos e no controle das tensões e desejos do ego. Esta projeção bem abrangente desta filosofia faz dele um filme sereno, ao mesmo tempo que possui um irônico tom de melancolia. Já fica claro a quem pertence cada parte: o singelo Jan fica com o lado sereno, e o cinzento Marek com o melancólico. Porém, o que acontece quando ambos se chocam? Parece haver duas coisas. Primeira, a revelação de um outro lado de Marek, em que vemos um inquietante e outrora escondido eu interior se revelando. E, segundo, a vaga promessa de mudança em Marek — o que passa longe de vingar. 

O visual em P&B é um grande responsável por ‘‘domar’’ o fato de A Estrutura de Cristal ser, no fundo, um feel good movie. O teor otimista dele é sabiamente ofuscado pela ausência de cores, tornando o longa menos maniqueísta — e, claro, dando o estilo e a atmosfera tão propícia ao existencialismo. Neste ponto, também temos a decupagem. O diretor Krzysztof Zanussi utiliza planos abertos que marginalizam a posição dos atores, dando destaque para o espaço desocupado restante. Há também travelings que valorizam a presença de galhos secos próximos da câmera, enquanto os personagens estão atrás deles. Os galhos sugerem uma espécie de ‘‘camada’’ entre eles, algo que está entre o poético e o árido e deve ser perfurado.

Jan escolheu viver naquele lugar isolado para ‘‘pegar um ar’’ por quatro anos. Chama atenção o plano abismal em que ele e seu amigo se olham no espelho. Não há muito significado naquilo, é apenas dois homens diferentes desta vez se reencontrando e, de forma invisível, se conflitando. Como se fosse uma união acompanhada de um certo choque. Outra coisa chamativa é o tic-tac do relógio que o design de som às vezes ressalta. Remete, é claro, ao tempo, e também ao fluxo de todo o movimento e permanência ali. Assim como o P&B e os galhos, ele é vagamente existencialista.

Em um momento que Jan folheia uma revista, Marek diz preferir televisão em P&B do que a cores. Pouco tempo depois, quando Jan está tentando fazer o sinal de uma maquininha tocar apenas por diversão, Marek pergunta a utilidade daquilo, a qual Jan apenas responde que ‘‘é inútil’’. Em seguida, Marek o questiona sobre como ele ‘‘pode desperdiçar tanto potencial assim’’ com coisas triviais, e ainda alega que o amigo precisa de um objetivo na vida. A ação de algo como fim em si mesmo, o puro deleite gratuito e a vida desnorteada de esquemas são um completo absurdo para o grande cientista. Mas ele próprio não percebe que há uma faísca disso nele mesmo. Ver a beleza no simples ante ao grandioso é justamente o que faz com que ele aprecie mais a televisão em P&B, um desperdício de cores disponíveis. 

Também vemos, desta vez de forma bem explícita, uma faceta mais descompromissada e lúdica de Marek nos momentos em que ele simplesmente brinca com Jan na neve. Eles apostam corrida, tacam bolas de neve um no outro e riem como meninos de dez anos. O roteiro desnuda um outro Marek em potencial e resgata um espírito juvenil e radiante nele. Outro singelo momento de exultante alegria e vivacidade é o que Marek, Jan e a esposa deste correm numa carruagem. Talvez a mais bela parte do filme, que esbanja encanto pela graciosidade com que o entusiasmo deles é capturado. A montagem dinâmica e suave ao mesmo tempo, a decupagem e a trilha sonora com o lindíssimo piano orquestram um momento vibrante e dotado de ternura mutuamente. Uma cena isolada e que não acrescenta nada de muito útil em sua narrativa, assim como tudo que Jan ama em sua vida.

De beleza próxima e conteúdo semelhante a esta parte, é a sequência de planos que surge após Marek perguntar a Jan o que preenche a vida dele. As imagens, sem palavras, respondem a pergunta. Tirar água do poço, assar pão, manter contato com a ciência pelo mero prazer do conhecimento. Tudo isso com o mesmo piano e a mesma montagem dinâmica recém-citada. Poesia pura que nos indica que, enquanto Marek possui um projeto de vida, Jan possui um projeto de viver. Projeto composto pelo instantâneo e o estável, o banal e o profundo. Em função de sua sagrada tranquilidade, Jan diz a Marek que evita conversas com atritos que podem causar algum desconforto. Ele vive em uma amena ataraxia. Por outro lado, Marek revela que chegou a ser antiético para cumprir o seu projeto. O primeiro se afasta para manter a proximidade, o segundo atropela para correr mais longe. 

Seria A Estrutura de Cristal uma apologia da negação schopenhaueriana de todo querer? Não, não se trata de negar o desejo, mas de escolhê-lo com sabedoria. Ou seja, é sobre, como já dito, a afirmação da vida. E Jan é profundo demais para afirmar uma vida menos simples.

A Estrutura de Cristal (Struktura Kryształu) — Polônia, 1969
Direção: Krzysztof Zanussi
Roteiro: Krzysztof Zanussi, Edward Zebrowski
Elenco: Barbara Wrzesinska, Jan Myslowicz, Andrzej Zarnecki, Wladyslaw Jarema, Adam Debski, Daniel Olbrychski
Duração: 74 minutos.

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