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Crítica | A Filha do Reverendo, de George Orwell

Desmemoriada e despossuída em Londres.

por Ritter Fan
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Imagino que seja muito comum um artista, naturalmente com senso crítico mais elevado e extremamente exigentes com sua própria produção, ter dificuldades para aceitar suas obras irrestritamente, pois ele ou ela sempre encontrará problemas que, para um observador comum, inexistem quase que por completo. A Filha do Reverendo, apenas o terceiro livro de George Orwell, e seu segundo romance de ficção, é uma das obras que o autor não só desgostou, chegando até a proibir sua reedição enquanto vivo, como a repudiou abertamente em diversas cartas escritas a seus amigos e colegas, deixando evidente o quanto achava a história boba e o quanto ele só fez o que fez porque precisava de dinheiro.

Quando descobri sobre esses fatos, o que só ocorreu após a leitura do romance originalmente publicado em 1935, tive dificuldades de compreender o porquê de todo esse inconformismo de Orwell. Afinal, de certa maneira, a obra era justamente uma quase fusão de elementos bem presentes em suas duas criações anteriores, o livro não-ficcional Na Pior em Paris e Londres que conta sua experiência investigativa nas regiões mais miseráveis destas duas grandes capitais europeias e o romance ficcional – mas fortemente baseado na realidade e, novamente, em suas experiências próprias – Dias na Birmânia, sobre o imperialismo britânico, a burocracia e corrupção das instituições e, também, sobre o limitado papel pré-estabelecido da mulher nessa engrenagem toda. Para todos os efeitos, é até possível afirmar que A Filha do Reverendo é a primeira obra verdadeiramente ficcional de Orwell e é perfeitamente possível que seu incômodo venha dessa característica, mesmo considerando que diversas situações do romance venham diretamente de sua experiência como um vagante em Londres, como colhedor de lúpulo no campo e como professor em uma pequena escola privada.

O romance narra a história de Dorothy Hare, a filha do reverendo de Knype Hill, um vilarejo na Ânglia Oriental, logo ao norte/nordeste de Londres. Trabalhando incessantemente para para manter a casa, a igreja e as finanças em ordem, algo complicado em razão dos investimentos (leia-se jogatina) de seu pai enviuvado e mantendo-se fortemente pia, Dorothy não tem tempo para absolutamente mais nada a não ser cumprir seus afazeres, fugir dos credores, das fofocas da cidade e, claro, do incessante assédio de um homem mais velho local, mantendo-se resolutamente solteira já no alto de seus 28 anos de idade. Seu extremo esforço pessoal em manter tudo funcionando da melhor maneira possível cobra um terrível preço e, um belo dia, ela acorda desmemoriada nas imediações, passando, então, a viver uma outra vida, desta vez ao lado de vagantes empobrecidos que conseguem emprego temporário colhendo lúpulo.

A estrutura do livro é bastante simples e didática, com cada um dos cinco capítulos – ou, talvez melhor caracterizando, quatro e um interlúdio que comentarei em breve – trabalhando um aspecto específico do périplo de Dorothy. Temos a obrigatória apresentação do cotidiano que ela precisa enfrentar no primeiro capítulo, sua amnésia levando-a para New Kent Road com oito dias que ela não se lembra nada do que aconteceu no segundo capítulo e assim por diante, até que, naturalmente, o ciclo narrativo se feche de maneira lógica, fazendo-a passar por diferentes situações de opressão e repressão que lhe dão um panorama de vida sem dúvida mais amplo e completo, mas certamente não mais livre e independente que permite que Orwell passeie pela injusta exploração dos meios de produção pelos fazendeiros, pelo então falido sistema educacional britânico (em razão principalmente da religião e do capitalismo) e assim por diante, sempre deixando claro como Dorothy, como uma mulher sem posses e sem um home ao seu lado, simplesmente não tem saída.

O interlúdio a que me referi é o terceiro capítulo da obra, em que Orwell parte para uma narrativa bastante experimental e aparentemente baseada em Ulisses, de James Joyce, em que toda a narrativa é construída ao redor de um diálogo quase em verso entre Dorothy e uma série de vagabundos/mendigos em Trafalgar Square. Apesar de teoricamente interessante, devo confessar que esse capítulo quase que me retirou completamente da obra não só por ele acrescentar pouco à narrativa, como por ele ser de leitura no mínimo tonalmente estranha e completamente diferente do que veio antes e do que viria depois. É como ler um livro dentro de outro livro e isso me incomodou, com a domínio de Orwell sobre essa forma de narrar sua história também me parecendo frágil mesmo que ele próprio tenha referenciado essa parte como a única que ele acabou gostando em sua obra.

A Filha do Reverendo pode não ser uma grande e inesquecível obra de George Orwell, mas ela certamente não é esse horror todo que o autor achou que era. Seus temas são relevantes mesmo nos dias atuais e ainda que ele não os explore de maneira mais aprofundada, sua Dorothy é uma personagem que consegue gerar empatia com o leitor e tornar-se uma heroína pouco usual e, por isso mesmo, muito interessante, especialmente considerando o final que pode até frustrar muita gente, mas que é exatamente o que o contexto pedia.

A Filha do Reverendo (A Clergyman’s Daughter – Reino Unido, 1935)
Autor: George Orwell
Editora original: Victor Gollancz
Data original de publicação: 1935
Editora no Brasil: Pé de Letra
Data de publicação no Brasil: 21 de julho de 2017
Tradução: Livia Buono
Páginas: 320

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