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Crítica | A Fonte da Donzela

por Luiz Santiago
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SPOILERS

São raros os filmes sobre a Idade Média europeia — aqui, a Suécia do século XIII — que retratam, com tamanho cuidado e excelente resultado de pesquisa história, esta sociedade. Especialista em maquetes, o diretor de arte P.A. Lundgren (O Sétimo Selo e O Rosto) criou exatamente a estrutura de um feudo simples europeu, um grande casarão da madeira dentro de uma propriedade de terra protegida por um senhor feudal e seus servos. Ao contrário do que diz o imaginário popular, os castelos de pedra não eram “a regra” para os feudos europeus e só com as inovações que ocorreram ao longo do século XII é que eles se tornaram mais populares, seguindo os passos de outras construções de pedra que já tinham uma popularidade um pouco maior. As igrejas.

Em uma entrevista retratada no livro O Cinema Segundo Bergman, o diretor diz algo curioso sobre sua inspiração estética e até de abordagem simbólica para este filme, cujo roteiro foi escrito por Ulla Isaksson (amiga de Bergman que também escreveu No Limiar da Vida) e baseado em uma das “vinte e sete” versões da folclórica balada medieval As Meninas de Töre em Vänge. Disse o diretor:

A Fonte da Donzela é um acidente de caminho. É um belo filme, mas de uma beleza que agrada aos turistas e é uma miserável imitação de Kurosawa. Nessa época eu só admirava o cinema japonês e era quase um pouco samurai!

Fortemente marcado por Rashomon (1950) e com muitas cenas que visualmente nos remetem a concepções estéticas de Akira Kurosawa em Os Sete Samurais (o trabalho com as paisagens e integração da natureza ao cotidiano do homem), Trono Manchado de Sangue (a primeira sequência na floresta, antes dos pastores de cabras, especialmente na cena da cabana do “bruxo”) e A Fortaleza Escondida (com a personagem feminina em uma jornada por um território hostil, embora muitas vezes ela não queira aceitar isso), A Fonte da Donzela é uma belíssima junção de referências assumidas do Mestre sueco a um Mestre do cinema japonês, mas tudo isso dentro de uma construção própria ao seu estilo, fazendo da canção folclórica um austero estudo sobre o estupro, o mal, a morte, o arrependimento e a relação do indivíduo com Deus ou com os Deuses, já que temos aqui uma passagem clara e historicamente acurada do paganismo para o cristianismo no norte da Europa.

Karin (Birgitta Pettersson) é uma jovem virgem que deve levar as velas à igreja para acendê-las em honra à Virgem Maria. Em sua trajetória, ela encontra três irmãos, pastores de cabras (animal-símbolo da substância primordial não manifestada; símbolo da ama-de-leite e da iniciadora, tanto no sentido físico quando no sentido místico), dois adultos e uma criança, com quem conversa e decide repartir o alimento que sua mãe Märeta (Birgitta Valberg) lhe deu para a viagem. Os adultos acabam estuprando Karin e um deles, aquele que tem a língua cortada, mata a garota com uma paulada na cabeça. No ato seguinte, a profecia do “bruxo” dita a Ingeri (a excelente Gunnel Lindblom), de que “três homens mortos caminham para o Norte” irá se cumprir. Os irmãos chegam ao feudo de Töre (Max von Sydow, em uma brilhante interpretação). Uma discussão sobre justiça divina ou cumprimento da vontade dos Deuses é colocada no texto de maneira bastante natural, obedecendo ao sincretismo religioso presente e recebendo um ato de vingança que não poderia ser mais adequado ao período. E todo o ato também carrega um significado poético imenso, a começar pela luta de Töre com uma árvore.

Notem que a trilha sonora de A Fonte da Donzela (composta por Erik Nordgren, o mesmo de JuventudeSorrisos de Uma Noite de Amor e Morangos Silvestres) é bastante rara e não tem um único padrão. Ela vai do uso de um pequeno instrumento pastoral até peças de baladas da Alta Idade Média e da Idade Média Central, com espaço para a música sacra no fim. Esta economia e o bom uso da música no filme destaca grandiosamente a ambientação criada por uma mixagem de som bem feita, trabalhando cada ruído no momento certo: o coaxar de um sapo, o canto dos pássaros, o riacho correndo, o vento nas folhas, o crepitar do fogo. Esse trabalho com o som e a forte presença do silêncio é que torna a luta de Töre com uma árvore ainda em sua juventude um ato simbólico extremamente doloroso, além de ser mais um indício de sincretismo, a purificação do corpo do pai que perdeu a filha, através dos galhos arrancados de uma árvore jovem, para um ato que ele ainda iria cometer. Não há oração ou pedido de perdão a Deus. O foco do pai atormentado neste momento é outro.

A direção de Bergman equilibra momentos e cenas detalhes com cenas de contexto do espaço e criação de suspense, principalmente no segundo ato. O filme carrega ingredientes de mitologia nórdica, cristianismo e violências de diversos tipos, todos fotografados com precioso uso de luz natural por Sven Nykvist, que entrou no projeto após grandes desentendimentos entre Bergman e Gunnar Fischer, seu fotógrafo por 12 anos, de Porto a O Olho do Diabo. Bergman faz questão de trabalhar a dualidade do comportamento entre as pessoas e como o Universo responde a isso. Ingeri, uma pagã bastarda, que está gerando um bastardo, tem bastante raiva e inveja de Karin por ser virgem e poder casar-se. Indicando que também foi estuprada, Ingeri representa a persona primal da mulher guiada por Odin, abrindo o filme soprando para que o fogo acenda. Então vemos uma labareda aparecer na tela, tendo uma bela nuance de luz suave de Nykvist aplicada ao momento.

Sua oposição a Karin e mesmo a Märeta se dá não apenas pela religião, mas pela posição de luz e sombra com que são mostradas ao longo do filme, assim como duplos de subversão e disciplina; inocência e cinismo; castidade e luxúria e o mais interessante, os dois símbolos naturais que acompanham as jovens: fogo (ligado a Ingeri, na abertura) e água (ligado a Karin, no encerramento). O espectador talvez não se dê conta, mas são esses elementos ajudam a criar o sentimento à flor da pele que passamos ter após a chegada dos irmãos ao feudo de Töre, um personagem majestoso que termina o longa em lancinante dor e de joelhos, prometendo uma igreja de pedra a Deus. A atrocidade crua da cena de estupro muda a visão do espaço e a função de cada personagem, para os quais diversos tipos de culpa são auto-aplicados, sentimento cuja redenção selvagem acontece na luta de Töre com os pastores.

Um ato de violência em um mudo em transformação, coberto por fé e mais violência. O roteiro adiciona uma crise existencial ao protagonista, ao que muitos poderiam chamar de “anacrônica” em relação ao momento, mas que cumpre ali uma função perfeitamente compreensível, a de um pai que lamenta a morte da filha após ser estuprada. Onde estava Deus neste momento? Seria o Odin de Ingeri, que por inveja, amaldiçoara Karin, mais forte que a divindade cristã à qual Töre e sua família aprendeu a adorar? Mas a sensação de abandono é imediatamente coberta por uma resignação do personagem de Max von Sydow, alquebrado, necessitando de algo que pudesse dar a ele a segurança de que, em algum lugar, alguém estava olhando para aquela situação.

A seu modo e em sua ira, ele já fizera a justiça contra os criminosos. Mas sua filha continuava morta. E seu estupro e subsequente morte não eram coisas que seriam simplesmente esquecidas. Todavia, diante de um ato de fé e uma promessa em meio a dor, um milagre acontece. Qualquer que fosse o objetivo dessa nova divindade em permitir uma inocente passar por tudo aquilo, a sensação de proteção e acalanto dos pais é conseguida por algo que, para sempre, lembraria a filha. As chamas, anteriormente, já haviam servido para purificar o corpo no exercício da vingança. Mas deixou profundas marcas. Já água que jorrou de onde estava a cabeça da donzela veio para limpar o espírito. Então havia mesmo um Deus. E a morte de Karin, de repente — em meio a todo o terror que a envolveu — se torna algo muito maior para aqueles carentes de consolo.

A Fonte da Donzela (Jungfrukällan – Suécia, 1960)
Direção:
Ingmar Bergman
Roteiro: 
Ulla Isaksson
Elenco: 
Max von Sydow, Birgitta Valberg, Gunnel Lindblom, Birgitta Pettersson, Axel Düberg, Tor Isedal, Allan Edwall, Ove Porath, Axel Slangus, Gudrun Brost, Oscar Ljung 
Duração: 89 min.

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