Home LiteraturaConto Crítica | A História do Brasil Escrita pelo Dr. Jeremias no Ano de 2862, de Joaquim Felício dos Santos

Crítica | A História do Brasil Escrita pelo Dr. Jeremias no Ano de 2862, de Joaquim Felício dos Santos

A protoficção científica no Brasil.

por Luiz Santiago
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É sempre uma bobagem (embora irresistível e que a gente às vezes faz porque é divertido e ajuda a segmentar um estudo sobre algo) tentar identificar “o primeiro” ou “os primeiros” exemplares de um determinado gênero, em alguma arte. Esse tipo de coisa sempre resulta em grandes discussões, dificilmente gera alguma concordância entre estudiosos e críticos e, para os que se recusam a jogar com definições mais abertas, pode gerar interpretações ou até mesmo teses erradas a respeito de “atmosferas” ou “intenções” contidas numa determinada produção. No Brasil, talvez o único gênero com um início marcado sem grandes problemas e que parece ser bem aceito por estudiosos, críticos e leitores é a literatura policial, que nos moldes como se concebe esse gênero, teve início no país em 1920, com a publicação de O Mistério. Já a ficção científica, a fantasia e o horror nacionais (que como sempre ocorre na literatura fantástica, estão ou podem estar entrelaçados), firmar uma linha com um pouco mais de exatidão ou “menos variáveis iniciais” é certamente difícil.

No sci-fi, por exemplo, vamos encontrar articulistas que colocam obras como O Fim do Mundo (1857) e Rui de Leão (1872) como protoficção científica, assim como este A História do Brasil Escrita pelo Dr. Jeremias no Ano de 2862; porque existe uma certa tendência a apontar como marco inicial desse gênero no país o icônico O Dr. Benignus (1875). O importante é que podemos, hoje, traçar algumas linhas possíveis de primeiros trabalhos literários num determinado gênero e, principalmente, conhecer variadas abordagens de autores, especialmente no caso de nossa literatura, que não tem exatamente um grande incentivo de resgate de clássicos — e por isso mesmo qualquer iniciativa nessa área é louvada a plenos pulmões. A presente narrativa de Joaquim Felício dos Santos encaixa-se mais como protoficção científica mesmo, mas pela maneira como aborda o tema, não por uma localização específica na linha do tempo de publicação. E a esse respeito, vale dizer que ela veio à luz no jornal O Jequitinhonha: folha política, litteraria e noticiosaAno II, Edição 47, em 22 de novembro de 1862.

A história, porém, se passa um milênio à frente, na cidade de S. Francisco, em data de 20 de novembro de 2862. A obra tem uma estrutura simples, abertamente satírica e muitíssimo crítica ao Imperador D. Pedro II, aos senadores e aos deputados, o que é bastante irônico porque o autor ainda seria, nos anos seguintes, tanto deputado quanto senador. A base do conto é uma transcrição, mas começa com o narrador expondo, em primeira pessoa, sua chegada à cidade, suas observações sobre o espaço, o mercado editorial e, desse ponto em diante, seu contato com a obra do Dr. Jeremias. Da metade do conto para frente, o que lemos — com exceção à abrupta e estranha finalização –, é a transcrição daquilo que o famoso Dr. Jeremias disse a respeito da política do Brasil mil anos antes. E é aí que o autor derrama todo o seu veneno e expõe as suas ideias a respeito do legislativo e do executivo do país.

Alguns momentos aqui são engraçados e, por isso mesmo, podem gerar divergências de interpretação quanto ao fato de serem ou não construções irônicas. O trecho a seguir é um dos que me fez rir e que, apesar de eu não crer que o autor utilizou essa descrição de maneira irônica, posso afirmar que uma leitura crítica, hoje em dia, feita por alguém que entenda o mínimo de Teoria da História, tratará isso como potencial ironia. Isso porque o texto eleva ao patamar de intocável uma produção sobre a História de um país. Impossível não achar nisso um humor cínico, em uma leitura contemporânea. Mas não creio que, no contexto em que foi escrita e no contexto do conto, esta tenha sido a intenção do autor. Assim diz ele a respeito da obra que irá transcrever: “Sua História do Brasil – é completa, imparcial, minuciosa, compreende o espaço de 1362 anos, 4 meses, 8 dias e 26 minutos, isto é, começa no descobrimento do Brasil e termina-se no momento em que ele deixara a pena de historiador“.

A maneira como Felício dos Santos encerra o conto é ruim, porque, em uma linha, coloca fim à transcrição da obra do Dr. Jeremias e não dá absolutamente nenhuma indicação do que ele iria fazer com aquelas informações ou o que mais ele veria naquele Brasil do futuro. Alguns anos depois, entre 1868 e 1872 (mas eu já vi fontes que indicarem 1873 como o ano de encerramento), no mesmo jornal, o autor publicaria Páginas da História do Brasil Escrita no Ano de 2000, que é, na verdade, uma continuação deste conto de 1862. Não sei como o problema deixado aqui é resolvido na continuação, mas o fato é que esta narrativa sobre os escritos do Dr. Jeremias poderia ter tido um final mais ajeitadinho, com um fechamento que nos retirasse da ação e nos deixasse em algum lugar para além disso aqui: “Não posso continuar a transcrição por falta de espaço; mas por este trecho já se pode avaliar o mérito da história do Dr. Jeremias“.

Pode-se até ver nessa frase uma brincadeirinha metalinguística com o fato de realmente não haver mais espaço dedicado ao conto no jornal, contudo, não tira o peso negativo que isso traz para o texto. Já a crítica política e a visão de futuro do autor para o Brasil são impressionantes e, em muitos aspectos, presentes até os dias de hoje; o que diz muito sobre o Brasil real e o Brasil retratado na literatura de ficção científica ao longo dos anos.

A História do Brasil Escrita pelo Dr. Jeremias no Ano de 2862 (A Historia do Brasil Escripta pelo Dr. Jeremias no Anno de 2862) — Brasil, 22 de novembro de 1862
Autor: Joaquim Felício dos Santos
Publicação original: jornal O Jequitinhonha: folha política, litteraria e noticiosa – Edição 47 (Diamantina, MG)
2 páginas

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