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Crítica | A Hora da Estrela (1985)

Suzana Amaral reinventa Clarice Lispector.

por Fernando JG
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Qual o tamanho, exatamente, de A Hora da Estrela de Suzana Amaral? Em linhas gerais, o seu primeiro filme, e esse é um dado marcante, já nasce uma obra-prima. Lançado no Brasil em 1985, foi aclamado imediatamente e por unanimidade, carregando todos os prêmios por onde passou. No Festival de Brasília, levou quase todas as categorias, sobretudo as mais importantes. Mas aí, no ano seguinte, Amaral lança o seu filme no exterior e o resultado é que grandes jornais como The New York Times, Chicago Tribune, entre inúmeros outros, chamaram a atenção para essa grande obra que nascia das mãos da brasileira; e aí passeou pela América do Sul, pela Europa, sendo reconhecida em todos esses ambientes e até escolhida para representar o Brasil no Oscar, mas não chegou lá. Para a atriz que interpreta Macabéa, esse é o filme de sua vida. 

Há um toque de autoria muito refinado na adaptação que Suzana Amaral faz da obra de Clarice Lispector. Ela não faz uma mimese do livro e usa bem de sua licença poética para moldar o enredo à sua própria vontade, introduzindo características marcantes não apenas do Cinema Novo mas também do Neorrealismo Italiano, que aparece bem assinalado no tom crepuscular que a película adota. A cineasta revisita Clarice Lispector de uma perspectiva exterior e reconfigura o vazio e o silêncio clariceano de modo muito característico, com imagem e expressão verbal, que não é só palavra, mas entonação e verossimilhança, comovendo a cada fala de Macabéa. Não é possível sair incólume depois de A Hora da Estrela, o filme. 

A respeito do argumento de que segue o roteiro, nada muda: assistimos a um período da vida de uma imigrante nordestina sem pai nem mãe que aos 19 anos vem para São Paulo tentar a vida. Como a cidade inteira é feita contra ela – afinal, ela é ingênua e desprovida da malícia do mundo – sua sina parece ser trilhar uma trajetória em que o abandono e o desamparo a guiam enquanto experimenta esse monstro cruel que é a cidade grande. É neste ambiente geográfico que mais a repulsa do que a atrai que Macabéa inicia, vivencia e termina a sua história, que é curta, mas intensa. Ela é, enfim, o exemplo de uma existência que é impossível e que inexiste. Ou melhor, o exemplo de uma vida pisada e invisível. 

Me chama especialmente a atenção a primeira cena e a primeira aparição de Macabéa no longa-metragem. “Sim, senhor”, ela diz com a cabeça baixa ao seu chefe após pedir que melhore algumas coisas na digitação dos papéis. Olhar sonso, cabeça baixa, voz direcionada para baixo e uma resposta de subserviência: “sim, senhor”. Num único take e com apenas uma fala, Suzana Amaral condensa toda a essência da heroína trágica com um engenho brilhante. Até o dado de época, que é muito forte na película, envelhece muito bem. É nostálgica a rádio que faz a espécie de trilha sonora do filme, a Rádio Relógio, que nos transporta, em sentimento, para uma situação temporal agradável. São esses pequenos arranjos, da ordem de uma simplicidade narrativa, que remarcam uma situação de excelência do filme. 

Reconheço, é verdade, que a película tem as suas limitações em nível de composição, mesmo de tecnologia cinematográfica – e me incomoda um pouco que, ainda em 1980, se utilize da voz gravada sobre o plano da imagem, algo que era feito nos primórdios do cinema brasileiro; contudo, toda essa carência e simplicidade no trato narrativo não deixam, jamais, de fazer um par harmônico com o conteúdo. Lembro-me de Rodrigo S.M, o narrador do livro, que diz que não irá rebuscar a forma do romance e a estrutura da sua narração será simples, humilde, como a sua heroína. Então, a pobreza compositiva, que não é proposital como é no livro, não se torna um defeito em A Hora da Estrela, mas serve muito bem como um artifício da composição da obra, mesmo que não intencional, sendo algo que liga a forma ao conteúdo, e por isso mais uma característica capaz de elevar a obra ao seu status merecido. 

A câmera supervisionada pela cineasta escolhe enfocar, com muito êxito, no ambiente doméstico e capta as diferentes instâncias da subjetividade de Macabéa. Não são à toa as cenas em que ela está se olhando no espelho numa meia luz crepuscular – e são duas destas cenas! -, ou mesmo no momento da dança em seu quarto. São essas as situações escolhidas para, em contraste com a invisibilidade de Macabéa lá fora, demonstrar a subjetividade e a singularidade da protagonista. É como se o ambiente interior expusesse a sua interioridade mais voraz. Tais episódios, que evidenciam os momentos de solidão plena da personagem, são cinema em sua forma mais essencial.

Macabéa tem um toque de voracidade no longa-metragem de Suzana Amaral, que é muito sutil, mas está lá. No ambiente doméstico, ela torna-se um alguém, dotada de si mesma, experimentando seus próprios desejos, conhecendo-se a si por meio da ideia mais pessoal que se pode ter de um autoconhecimento. É uma direção muito autoral porque transgride a literatura e arrisca em cenas ousadas e ferozes, mas melancólicas e ingênuas.

A atuação de Marcélia Cartaxo como Macabéa é apenas uma das interpretações mais sublimes do cinema brasileiro; é o puro suco da representação dramática. Atuação elegante, fina, complexa, intensa, verdadeira, engajada, potente em expressão facial e com domínio vocálico sem exageros. Verossímil, Marcélia confunde-se o tempo inteiro não com a Macabéa personagem ficcional, mas com as Macabéas da vida real, tamanha é a sua força interpretativa. É por isso que em todas as premiações em que o filme foi indicado a atriz levou para casa a estatueta de melhor intérprete e em Berlim levou o seu merecidíssimo Urso de Prata de melhor atuação. 

O tema social ainda está presente, no entanto, onde a cineasta decide investir não é na marca de miséria da personagem mas no tema do desamparo, construindo uma trama amorosa muito dolorida para a sua heroína, fazendo dela um sujeito faltante e que é o tempo inteiro abandonada, experimentando o amor sempre pela via da ruptura. Macabéa é dispensada por Olímpico (José Dumont) e então ela sofre. Contudo, a sua inocência não a permite entender a infelicidade, e por mais que não saiba o que isto significa, ela sabe que dói mas não entende muito bem o que está acontecendo.

A dor do desamparo amoroso é psicológica, é claro, mas o afeto rompido gera sempre dor física, ou uma sensação de dor física. É por isso que ela pede uma aspirina para sua amiga Glória (Tamara Taxman), porque algo está doendo dentro dela, mas ela não identifica que tipo machucado é esse. É a sua primeira experiência amando e já é da maneira mais devastadora que existe. Pobre de Macabéa que não sabia que a paixão eleva, mas a paixão também destrói. Quando vai à cartomante logo em seguida, naquela cena cheia de misticismo e picaretagem, a senhora diz a ela que vai ser amada por um homem rico e alemão, de olhos azuis, e ela apaixona-se apenas pela ideia. O fim do longa expõe uma espécie de metáfora da situação de um encontro amoroso que é, ao fundo, essa noção de amparo, de buscar no Outro algo que complete a falta, e este é o desejo mais verdadeiro de Macabéa: notar e ser notada, existir, enfim, com plenitude para amar e ser amada. 

É uma missão quase impossível adaptar qualquer obra de uma autora tão complexa quanto Clarice, no entanto, Suzana Amaral não se intimida perante o cânone e coloca-se diante dele, desvendando a esfinge. A sua Hora da Estrela – porque, afinal, já não é mais de Clarice – é autoral, ousada e fascinante, deixando-nos obcecados não apenas pela construção dramática, mas pela singularidade da sua Macabéa. É, de fato, uma belíssima obra, que ganha cada vez mais força a cada reexame. Receba o filme de Suzana como quem recebe o cinema em sua forma mais pura e essencial, que é assim que ele deve ser recepcionado. 

A Hora da Estrela (Brasil, 1985)
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Suzana Amaral, Alfredo Oroz (baseado no romance de nome homônimo de Clarice Lispector)
Elenco: Marcélia Cartaxo, José Dumont, Tamara Taxman, Umberto Magnani, Dirce Militello, Fernanda Montenegro
Duração: 96 min.

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