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Crítica | A Hora e Vez de Augusto Matraga (1965)

por Fernando JG
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Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Estêves, filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto – o homem”.

A Hora e Vez de Augusto Matraga, de João Guimarães Rosa.

Augusto Matraga é um enigma. O autor da maior e mais complexa obra da literatura nacional, o Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa escreve, anteriormente, com um intervalo de dez anos de diferença, uma das maiores novelas da Literatura Brasileira. A Hora e Vez de Augusto Matraga vem acompanhada de uma série de dilemas éticos, morais e religiosos que se entrecruzam na mística e transcendental trama rosiana. Propondo uma reflexão sobre a natureza humana, Rosa pensa a redenção a partir da história de Augusto Matraga, um sertanejo impiedoso, que faz a passagem do carrasco ao beato no curso da narrativa. Assim, Rosa discute a alma do homem entre o bem e mal no meio do sertão. Inclusa no livro Sagarana (1946), A Hora e Vez de Augusto Matraga é seguramente um dos pontos mais altos da nossa literatura. 

Dezoito anos após a publicação da novela, Roberto Santos inicia a produção do seu filme, de nome homônimo, com atuação impecável de Leonardo Villar no papel de Matraga. A obra foi lançada em festivais em 1965, saindo como ganhadora do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 1966. É aí que conhecemos a primeira leitura cinematográfica do texto de Rosa, que vai narrar a história de Augusto Matraga, um fazendeiro porreta de ruim, cuja família, com esposa e filha, ele não dá a mínima. Bate em quem for, mata quem lhe aparecer na frente. Vivendo uma vida de violência e mandonismo local, Nhô Augusto tem seus homens, que estão sempre ao seu dispor. Matraga é um típico mandão, figura conhecida no interior do Brasil.  

O longa começa com ele mesmo chegando em seu cavalo preto, soberbo, no meio da sua propriedade. Logo é recebido por um de seus empregados, que vem a cavalo dizer que está às suas ordens, por mando e desmando.  Nestes momentos inicias, Matraga insiste em dizer: “Eu tô mandando!”, frase que combina com a sua personalidade. Esse é Augusto Estêves, Nhô Augusto, o Homem. 

Como o diretor opta por trabalhar fielmente o texto de Rosa, o filme segue a mesma linearidade da novela: Matraga, a um dado momento, começa a perder dinheiro, força e poder na região. Seus homens o abandonam, a mulher e a filha fogem com outro, e ele fica só. Em seguida, Nhô Augusto passa por uma experiência de quase-morte, quando é pego numa emboscada armada por inimigos, mas se recupera, e agora retorna à vida redimido de toda maldade, quase beatificado, humilde, se tornando outro, diferente daquele que conhecemos no início da narrativa. Essa é a história de Augusto Matraga. O que brilha aos olhos é perceber como o Roberto Santos constrói, tecnicamente, toda a visualidade de um texto que é propriamente literário. 

A trilha sonora de Geraldo Vandré é um absurdo, e o modo como ela é conduzida nas cenas é um trabalho primoroso – eu diria até que é um aspecto compositivo essencial para o enredo, já que é ela que oferece uma dramaticidade intensa no curso dos acontecimentos, dotando a narrativa de um caráter épico, como uma epicização da trajetória de Augusto Matraga. Sobretudo nas cenas em que não há diálogo, em que há apenas Matraga em seu cavalo indo para algum lugar, a trilha ao fundo age como uma condutora de Matraga para algum destino trágico – o que não deixa de se confirmar cena após cena. No fundo, a música também conta uma história. 

Junto com a trilha, o paisagismo do sertão, que não é o do triângulo da seca, encanta, pois está sempre acompanhado de planos abertos musicalizados enquanto vemos as belezas verdes e endurecidas ao fundo. A graciosidade do sertão está ali para construir, esteticamente, a beleza fílmica, já que o diretor poderia simplesmente optar por não retratar a natureza do modo em que ela é retratada.  Destaque para as atuações de Jofre Soares, como Joãozinho Bem-Bem e Flávio Migliaccio, como Quim Recadeiro, ambos, juntos de Leonardo Villar, oferecem uma verdade, uma verossimilhança sertaneja irrefutável em seus papéis. 

Nas cenas em que Matraga descobre a fuga da mulher e da filha, acontece a primeira transformação, o primeiro laço com a sua vida anterior é cortado. Em seguida, seus homens já não são mais seus, e corre em todo lugar que o Major está querendo pegar Matraga à traição, já que ele não respeita mulher casada, muito menos filha dos outros. Aos poucos, o velho Nhô Augusto começa a se desmanchar e se desfazer de todos aqueles signos que antes faziam parte do seu universo para se tornar um novo homem, e as perdas materiais e pessoais refletem isso.  Matraga, no auge da sua arrogância, decide ir atrás da mulher, da filha e de seus inimigos, no entanto, cai numa armadilha. A ordem é clara: é para dar fim, marcar com ferro e jogar na ribanceira. É nesse momento que Matraga tem sua morte simbólica, e então o filme se divide em dois: um antes e um depois, e a todo tempo confronta esse passado e esse presente para dar sentido ao processo de redenção do personagem. E quem oferece dramaticidade e ambientação cênica a toda essa transformação é, justamente, a trilha sonora, que amarra toda a unidade estilística e temática. Este filme é um caso típico de quando todos os aspectos compositivos conversam entre si, e é impossível pensar o filme, por exemplo, sem a sua trilha. 

Quando jogado do penhasco, Matraga é encontrado por Mãe Quitéria e Pai Serapião, que cuidam dos seus machucados e oferecem abrigo até ele se recuperar. É neste momento que o novo Matraga é gerado. Mãe Quitéria diz que ele chorava igual criança quando chegou, mas com o tempo foi melhorando. Para dar imagem a esse simbolismo do nascimento, a câmera, primeiro, o coloca em um plano fechado em que ele está plenamente deitado enquanto é cuidado pela mãe; alguns dias depois, ele começa a andar, mas mancando, como se engatinhasse, e então a câmera se posiciona atrás de Matraga para filmar seus primeiros passos. Nos dias seguintes, ele renasce, pleno.

Assim que Matraga renasce, ele quer ser outro. E ele trabalha para ter o coração manso e humilde, semelhante ao de Cristo, e não um coração rude e nervoso como antes. A passagem de Nhô Augusto está intimamente ligada a um caráter sacro e místico, dentro de uma tradição popular de muita fé. Mas ele se defronta com os seus próprios demônios a todo tempo, e a todo tempo ele é tentado, como nos episódios bíblicos da tentação de Cristo pelo Diabo, a cair de novo no lugar do erro e da maldade. 

A cena em que ele e Mãe Quitéria caminham por uma estrada a passos largos é utilizada para pensar nos conflitos internos e éticos que Matraga está atravessando. Ao mesmo tempo em que ela aconselha sem parar o mesmo conselho, e reza a mesma reza, ele sobrepõe a voz dela com reflexões sobre a sua própria natureza.  Quim Recadeiro, seu parceiro, morreu por sua culpa. E quando, e se, ele,  Matraga, for para o Céu, como ele vai olhar na cara de Quim Recadeiro, sabendo que ele morreu por sua culpa? “E se eu entrar no Céu? Com que cara eu vou olhar para o Quim Recadeiro lá junto de Deus?”

É uma sequência de arrependimento e redenção em que são expostos os conflitos mais pessoais da natureza de Augusto Matraga. É nesse plano-sequência que Matraga vai pensar toda a sua vida, toda a sua trajetória.  Enquanto ele está atordoado, Mãe Quitéria diz: “Reza o Credo!”,  e logo profetiza: “Se acalma, que a hora e vez de Nhô Augusto há de chegar!” 

Facilmente essa é uma das cenas mais memoráveis do Cinema Novo, e apostaria em dizer que um dos momentos mais lindos da nossa filmografia nacional. A gente se emociona primeiro pela montagem: o plano-sequência com a trilha sonora do Geraldo Vandré que acompanha, numa musicalidade dramática, a caminhada de Nhô Augusto, junto com Mãe Quitéria, cumprindo atos de penitência. Em segundo, a sobreposição de vozes: enquanto Mãe Quitéria reza, Augusto repensa toda a sua vida, todos os seus erros enquanto homem. No final, ele sabe que sua vez e hora se aproximam, e é isso que ele aguarda, e é para essa hora que o filme se encaminha. 

“Se alguém tem de morrer, que seja pra melhorar” 

Nos momentos finais é que a gente entende que hora e vez é essa: Joãozinho Bem-Bem e sua tropa estão prestes a matar a família inocente de um criminoso que fugiu, e então, por acaso, no canto da tela, aparece Matraga, como se guiado pelo destino para a prova final do seu processo de mudança. É neste momento que Augusto Matraga tem a sua hora e vez de mostrar justiça e redimir sua alma. Ele, que tinha abandonado a violência e a criminalidade, se vê numa encruzilhada ético-moral: estar ao lado do amigo Bem-Bem e ver ele matando a família inocente ou ser justo pela primeira vez e salvar a família da dureza assassina de Bem-Bem? É nesta hora que Matraga tem a sua vez e comete um ato de justiça pelo bem dos inocentes e mata o seu parceiro, o Joãozinho Bem-Bem. No momento em que é justo, a sua alma é expurgada, completando seu destino e seu processo de mudança. Matraga morreu como exemplo de uma causa justa e olhando pelos inocentes. Finalmente, sua alma encontra um estado de mansidão e humildade, estado esse que ele tentou ao longo de toda a narrativa. Na última cena, o trabalho de câmera, numa espécie de close-up no rosto de Matraga, vai se afastando, como se a câmera fosse o próprio espírito de Augusto Matraga saindo de seu corpo. E aí a gente vê de cima o corpo penitente e açoitado de Matraga, que foi o resultado do seu processo de redenção. E então se separam a alma, que foi purificada,  e o corpo, que é a sua carne. Réquiem para Matraga, o nome da trilha sonora do filme, canta o seguinte: “Se alguém tem de morrer, que seja pra melhorar”. Esse é o fim final. 

É um filme sobre a trajetória de como alguém se torna aquilo que se é. Um clássico do Cinema Novo, a película, ao trabalhar fielmente o texto literário, não deixa de pensar, de olhar e de estudar um Brasil pelas lentes do cinema engajado. Em 1965 Glauber publica o seu ensaio Uma Estética da Fome, um ano depois do seu filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, em que discute a violência, o misticismo religioso, o banditismo social etc., ideias e temas que vão reverberar no filme do Roberto Santos, não por influência, mas porque as ideias contidas no ensaio do Glauber fazem parte da estética geral do Cinema Novo. Um filme indispensável, A Hora e Vez de Augusto Matraga se torna ainda mais notável com a passagem do tempo, que apenas reafirma a sua grandiosidade ao entregar essa produção num tempo tão sem apoio para o cinema como foi a década de 60. 

A Hora e Vez de Augusto Matraga (Brasil,  1965)
Direção: Roberto Santos
Roteiro: Roberto Santos, Gianfrancesco Guarnieri, (Guimarães Rosa, autor do texto original)
Elenco: Leonardo Villar, Joffre Soares, Maria Ribeiro, Maurício do Valle, Flávio Migliaccio, Solano Trindade, Antônio Carnera, Ivan de Souza, Emmanuel Cavalcanti, Áurea Campos.
Duração: 109 min.

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