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Crítica | A Inocente Face do Terror

por Rafael Lima
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Há algo enervante em torno do tropo da criança maligna, que há décadas povoa os gêneros do terror e do suspense. Afinal, estas figuras assassinas, e em alguns casos até mesmo demoníacas, possuem o mais eficiente dos disfarces para cometer os seus atos horríveis, a pureza e a inocência infantil. A Inocente Face Do Terror, filme de 1972 comandado por Robert Mulligan, traz mais uma criança sociopata para a história do cinema; um menino de calças curtas que provoca uma série de mortes em uma comunidade rural, cuja maldade não é reconhecida pelos adultos por eles não conseguirem aceitar que um infante seria capaz de atos tão cruéis.

Mas o que diferencia o filme de projetos com premissas semelhantes, como Tara Maldita (1956), ou O Anjo Malvado (1993), é que A Inocente Face Do Terror assume uma aura tão enganosamente inocente quanto a de seu vilão, ao se afastar de signos característicos do gênero. Na trama, situada na década de 1930, Niles Perry (Chris Udvarnoky), é um menino gentil e amável, que vive em um sítio com a sua família. Niles tem como principal companhia o seu irmão gêmeo, Holland (Martin Udvarnoky), que diferente de Niles, possui uma personalidade agressiva e um senso de humor terrivelmente sombrio. As brincadeiras de Holland, entretanto, começam a se tornar cada vez mais perigosas e mortais, ao mesmo tempo em que Niles se mostra incapaz de deter o irmão.

Escrito por Tom Tryon, que adapta o seu próprio romance, A Inocente Face Do Terror concentra-se na relação entre os gêmeos Perry, construída em torno do arquétipo do gêmeo bom e do gêmeo mal. Holland é um sociopata que raramente sorri, um menino incapaz de se importar com qualquer coisa que não sejam as suas próprias necessidades; o completo oposto de Niles, uma criança simpática, e possuidor de uma empatia tão grande, que é capaz de assumir o ponto de vista de outros seres e pessoas, uma habilidade que sua avó Ada (Uta Hagen) chama de o grande jogo. O contraste entre os irmãos é bem construído pelo roteiro, e de fato é o coração da narrativa, onde está centrado uma das grandes reviravoltas da obra. Verdade seja dita, para as audiências atuais, essa reviravolta pode ser vista a quilômetros de distância, mas o texto é inteligente o bastante para não fazer dela uma grande revelação final, construindo-a de forma coerente.

O roteiro, ao assumir quase exclusivamente o ponto de vista de Niles, constrói a existência do garoto como sendo muito solitária. Ainda que ele tenha uma família numerosa, os únicos parentes com quem o menino estabelece uma relação real são a avó, e a mãe enferma, Alexandra (Diana Muldaur), com os outros personagens ganhando pouca ou nenhuma atenção. Dessa forma, a narrativa lança um olhar interessante sobre a alienação dos adultos diante dos problemas das crianças, já que embora Niles seja muito amado por sua mãe e avó, as duas custam a ver (ou aceitar) os claros sinais de que há algo muito errado com os gêmeos.

Afinado com a proposta do terror proposto pelo roteiro, o diretor Robert Mulligan concede ao seu filme uma atmosfera igualmente inocente e bucólica, que evita os signos mais característicos de obras de terror e suspense. A fotografia ensolarada da obra evoca um clima nostálgico e inocente, enquanto a trilha sonora de Jerry Goldsmith investe em temas que remetem mais a algum drama juvenil de época do que propriamente a uma narrativa horrorífica. A música é um elemento importante na construção do suspense, já que a melodia assobiada por Holland é uma de suas assinaturas, e antecedem alguns acidentes fatais, mas embora melancólica, ela passa longe das marcas sonoras atribuídas ao terror e ao suspense.

A violência da obra também é tratada de forma distanciada, com o filme deixando que a imaginação do espectador faça a maior parte do trabalho, já que o longa evita tratar das consequências imediatas das horríveis tragédias que estão acontecendo naquele sítio. Ao fazer essa opção, Mulligan estabelece a estética do filme como estando tão alienada dos eventos horríveis que estão se desenrolando quanto os próprios personagens, excetuando os minutos finais, onde a gravidade do horror perpetrado torna-se mais clara, a medida em que um personagem finalmente aceita a verdade. O que nos leva a uma das reviravoltas, portanto, aviso que há spoilers no parágrafo a seguir.

SPOILER

A reviravolta de que Holland está morto desde o início da história, e agora existe apenas na mente de Niles é sinalizada ao longo de todo o filme. Por outro lado, a revelação se comunica com os temas do filme, ao mesmo tempo em que concede a trama uma bem-vinda camada de ambiguidade. A obra sugere que ao usar as suas habilidades empáticas para imaginar estar com o irmão morto, Niles se envolveu tão profundamente no Grande Jogo, que foi dominado pela persona de Holland, que sempre exerceu influência sobre ele.  Por outro lado, toda a visão que temos de Holland nos é fornecida por Niles, que é um narrador claramente não confiável. Dessa forma, podemos nos perguntar se Holland era realmente a criança diabólica que Niles imagina, pois por mais que tenhamos visto o personagem morrer caindo de um poço enquanto tentava matar um gato, essa é uma lembrança fornecida por Niles e, portanto, pode ser questionada. Não é de se surpreender que Robert Mulligan dirija o seu filme de forma a parecer anestesiado diante do horror perpetuado por Niles/Holland, pois a estética do filme reproduz a nostalgia inocente e enganosa do ponto de vista de seu protagonista, o que é uma proposta muito interessante da parte do diretor.

FIM DO SPOILER

A Inocente Face Do Terror é um thriller psicológico muto bem filmado por seu diretor, que desenvolve um crescendo de tensão discreto, mas inequívoco, que desemboca em um desfecho trágico e chocante. É uma obra com um elenco muito bem conduzido (especialmente os atores gêmeos, em seu único papel no cinema), e com um roteiro sagaz, que reconhece que algo verdadeiramente maligno pode crescer mesmo nos locais e figuras mais puras, não importa o quão brilhante ou inocente seja a superfície.

A Inocente Face Do Terror (The Other) — Estados Unidos, 1972
Direção: Robert Mulligan
Roteiro: Tom Tryon (Baseado em seu próprio romance)
Elenco: Uta Hagen, Diana Muldaur, Chris Udvarnoky, Martin Udvarnoky, Norma Connolly, Victor French, Loretta Leversee, Portia Nelson.
Duração: 108 Minutos.

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