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Crítica | A Jornada (2019)

por Iann Jeliel
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A Jornada

Não é um filme exatamente sobre a jornada, mas sobre a escolha de uma mãe em partir para ela ou cuidar da filha. O drama da francesa Alice Winocour, conhecida mundialmente por sua indicação a melhor filme estrangeiro pelo roteiro de Cinco Graças, abandona o lado científico da viagem espacial para abordar o dilema humanista da protagonista no que ela tem a perder ao caminhar na beirada da resolução de seu sonho. Tematicamente, sem dúvidas, é uma escolha de abordagem extremamente atual, visto a realidade de muitas mulheres que abandonam carreiras de sucesso por não conseguirem ou nem poderem conciliar seus desejos profissionais à trabalhosa vida de responsabilidade materna. Apesar de deixar bem claro, em pouquíssimos minutos, o recorte escolhido, não posso mentir que é no mínimo frustrante se deparar com uma narrativa que se contenta apenas com parcela de seu potencial.

Esmiuçando essa parcela, de fato, a cineasta demonstra extrema sensibilidade e conhecimento no tratamento do epicentro moral, apresentando as informações necessárias para o entendimento do contexto e importância da escolha a ser tomada. Eva Green facilita nossa empatia e com o material disponível converte o background explícito em uma belíssima interpretação intimista. Seus olhos brilham de orgulho de ser parte da primeira missão a Marte, ela sabe que está ali por merecer, tanto que ela e o próprio filme atenuam o incômodo dos companheiros masculinos de acharem que aquele não é lugar de mulher de maneira extremamente elegante, sem partir para discursos óbvios ou usá-los como desvio e protagonismo temático, incorporado em maior atenção para a esperada separação da filha. Imensurável porcentagem da duração é sobre cenas que estabelecem o forte vínculo emotivo entre ela e Stella, principalmente na dificuldade de fazê-la entender o forçado desapego sem que quebre a saúde da relação.

Um desafio não só idealizado, assombrado com a proximidade da missão, como na prática vivenciado dentro dos procedimentos protocolares de quarentena que a antecediam. A Jornada deixa claro que a relação dela com o ex-marido e pai da criança não tinha grandes desentendimentos para ser a força motriz de outro problema gerado pelo masculino, sendo o principal vinculado à dificuldade da pequena em interações sociais que era compensada pela superproteção da mãe em ter sua guarda, logo, no mês de treinamentos na solitária, o apego exacerbado já começaria a cobrar o preço. Isso foi uma sacada inteligente de dinamismo dramático à narrativa, em que cada novo passo garantia um desgaste cumulativo mais complexo, acompanhando uma construção exponencial do peso emocional precedente ao clímax, devidamente verossímil pela química fortíssima de Green e a atriz mirim Boulant.

Agora, toda essa parte da preparação no campo científico fornece informações teóricas embasadas interessantes de serem acompanhadas, que principalmente diante do vigor realístico me levam a pensar por que não adotar também essa linguagem em prol de amplificar a outra. Claro, não estamos diante de um cinema hollywoodiano, além de que analisando friamente não chega a ser essencialmente um problema, e sim o intuito de contar essa história (não é embasada em nenhuma real, mas está devidamente entrelaçada no tributo a diversas outras astronautas que não ganharam a voz que mereciam como evidenciam os créditos), diante da projeção de dominância masculina no cenário. Ora, se o intuito é garantir voz, por que não proporcionar em tempos igualitários os feitos espaciais também? Acredito que o filme tinha recursos para isso e não precisava nem ocupar tanto da grade de tempo.

Entendo que no fundo mostrar a missão em resumo possa soar como um atestado ao masculino de que ela realmente conseguiu, algo que contradiz o que o próprio filme evidencia no personagem do Matt Dillon, que no seu singelo desenvolvimento aprende que as mulheres não precisam provar mais do que os homens para dizer por que merecem estar ali. Contudo, analisando de outra forma, creio que seria recompensador pensando na jornada da personagem, cuja virada consta justamente em proporcionar uma mudança de mentalidade do público, que passará a enxergar a “limitação” materna como uma prova de força maior, uma inspiração para olhares da filha e de qualquer outra mãe que assista e não se sinta desmotivada por ser mãe ou mulher, em qualquer ambiente, a não desistir de suas vontades por fatores externos.

É isso que faz o verdadeiro empoderamento feminino, liberdade de escolhas que só são possíveis em um ambiente igualitário. Assim, dentro da minha humilde visão fora do lugar de fala que não exatamente me pertence, só faltou ao filme assumir esse lado físico da narrativa por completo e aproveitar devidamente o poder do audiovisual em conseguir mostrar realizações extraordinárias ocultadas ou esquecidas. A perspectiva de gênero sem dúvida apresentou simbolicamente uma resposta, mas até por questões rítmicas, chamativas, creio que poderia ter ido um pouco além e consumado as mulheres no “espaço” que elas merecem.

  • Filme visto em 13/03/2020, na cabine de imprensa realizada pouco antes do fechamento dos cinemas e da estreia do filme, anteriormente prevista para 19/03/2020 e até hoje sem uma nova data definida.

A Jornada (Proxima) — França, Alemanha, 2019
Direção: Alice Winocour
Roteiro: Alice Winocour e Jean-Stéphane Bron
Elenco: Eva Green, Matt Dillon, Zélie Boulant, Alexei Fateev, Lars Eidinger, Sandra Hüller, Nancy Tate, Grégoire Colin.
Duração: 106min.

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