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Crítica | “A Kind of Magic” – Queen

por Luiz Santiago
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O dia 13 de julho de 1985 foi um dos dias mais importantes para para a jornada profissional do Queen, que já entrava aqui em sua reta final, tendo apenas mais três álbuns por vir: The Miracle (1989), Innuendo (1991) e Made in Heaven (1995). Neste dia, o show beneficente concebido por Bob Geldof e Midge Ure para angariar fundos em prol dos famintos na Etiópia foi realizado no Wembley Stadium, em Londres. Chamado de Live Aid o evento mostrou ao mundo que o Queen ainda estava na ativa e em alta qualidade musical — a apresentação da banda “roubou o show”, segundo Elton John –, e ainda recolocou os músicos nas graças da mídia depois das polêmicas relacionadas a ida deles à África do Sul sob o apartheid, os boatos de que estavam se separando e as primeiras fofocas de que Freddie Mercury estava com HIV.

As brigas internas do quarteto praticamente se tornaram coisa do passado após todo o stress de The Works e depois do tremendo sucesso da apresentação deles no Live Aid, a vontade de gravar um novo projeto reapareceu. E tudo começou de verdade com o convite pessoal do cineasta australiano Russell Mulcahy, fã da banda, para que eles gravassem uma música tema para o filme Highlander – O Guerreiro Imortal (1986). Depois de ver algumas filmagens, o quarteto ficou extremamente animado com o projeto e cada um resolveu contribuir com pelo menos uma música para o filme. Assim nasceram as faixas A Kind Of Magic (Taylor), One Year Of Love (Deacon), Who Wants To Live Forever (May), Princes of the Universe (Mercury) e Gimme the Prize (May).

O Queen ainda gravou duas faixas que não entraram em nenhum álbum da banda mas estão no filme: uma versão de New York, New York e a instrumental A Dozen Red Roses for my Darling, de Roger Taylor. Há ainda em Highlander a execução de outra música do Queen, Hammer to Fall, do álbum The WorksOne Vision, canção de abertura de A Kind of Magic (cujo título vem da música de mesmo nome, que por sua vez é baseada em uma frase dita por Highlander no filme, explicando que sua imortalidade era “um tipo de mágica”), também foi utilizada como trilha sonora, mas para o filme Águia de Aço (1986).

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É muito interessante ouvir A Kind of Magic após ter visto Highlander e Águia de Aço, porque temos em mente a configuração de um disco que surgiu com propósitos diferentes e por isso mesmo traz uma mescla de estilos e arranjos para as canções que não só encarnam a alma musical da época como mostram a evolução da banda — enfim trabalhando bem com sintetizadores, habilidade ajudada pelo fato deste ser o primeiro álbum da banda registrado digitalmente, o que deu melhor qualidade para a combinação de tapes e pequenas colagens vocais ou instrumentais que sempre fizeram parte do estilo do Queen.

One Vision abre o álbum com uma mensagem liricamente inspirada nos discursos de Martin Luther King e um pouco impulsionada pelo clima de confraternização do Live Aid. A iniciativa para a composição principal partiu de Roger Taylor, mas a canção, até chegar à sua fase final, recebeu adições de todos os membros da banda, por isso foi creditada como composição do Queen. A faixa recebe variações vocais solo e de grupo bem diferente ao longo de sua duração, com momentos distorcidos e acoplados a onomatopeias gravadas pelo quarteto. A estrutura central pode ser vista com baixo, bateria eletrônica, sintetizadores, guitarra em diferentes configurações e vocais. As transições psicodélicas no meio a faixa serviram para ajudar a marcar a mudança de ritmo da bateria, além da adição de uma outra camada da percussão e frases musicais editadas. Como vocês podem ver no excelente documentário que disponibilizei acima, algumas sessões de gravação de One Vision foram filmadas e vemos tanto as brincadeiras de Mercury mudando o sentido da letra original (one shrimp, one prawn, one clam, one chicken) quanto a batalha para se conseguir uma “batida certa”, uma entrada mais forte ou um arranjo vocal definitivo. E isso é só uma pequena parte do trabalho, imaginem só o trajeto completo, considerando todas as canções e o nível de exigência do Queen!

Há interessantíssimas mudanças na versão de A Kind of Magic que vemos em Highlander e a que temos no disco. No filme, a faixa fecha a obra, acompanhando os créditos finais, e tem uma instrumentação um pouco macabra e musicalmente mais pesada, com forte presença de sintetizadores, menos vocais de apoio e menor letra (fortemente inspirada na poesia de One Vision, prestem atenção). Embora a versão do disco tenha tido forte participação de Mercury na criação de um novo arranjo, a composição continuou creditada a Roger Taylor, que nos anos 1980 foi o grande destaque nas composições do Queen, com uma mudança drástica de estilo se comparado ao que tivéramos dele até The Game (1980). A faixa é viciante, possui uma progressão de acordes que Taylor vinha reinventando e rearranjando em composições como Modern Times Rock ‘n’ Roll e Calling All Girls e praticamente não mantém contraste entre as sessões, que se estruturam em um pré-coro, alternância de tamanho entre os versos das estrofes (pares longos e curtos), finalização dos blocos com um coro extremamente criativo e muito bem utilizado no clipe; um pequeno interlúdio e um encerramento rítmico tão orgânico que nos deixa dançando mesmo depois de terminada a faixa.

A belíssima balada One Year of Love, ganha o público não só pela delicadeza e sentimento da poesia (uma constante nas faixas românticas de John Deacon), mas pela forte interpretação de Mercury, que já começa imponente e vai ganhando força e adições de vozes como uma resposta a alguns versos. Completam a faixa a boa relação do sintetizador com a orquestra de cordas e o solo de saxofone (tocado por Steve Gregory), substituindo a guitarra de May, que ficou de fora da faixa após uma discussão com Deacon, afastamento que muitos fãs desaprovaram, mas que, se pararmos para pensar, deu à faixa uma aparência clara de balada pop que cai bem à sua proposta.

Na sequência há Pain Is So Close to Pleasure, uma das poucas canções em total falsetto cantadas por Mercury, que começou, na verdade, com um riff de Brian May e acabou sendo composta por Deacon e Mercury, mantendo os vocais complexos, a ligação com o motown e uma organização melódica muito exigente. A base da música é de dois versos cantados em diferentes tonalidades (Roger Taylor já havia visitado esse modelo em Tenement Funster e Drowse), gerando aí quatro sessões vocais, acompanhada de uma harmonia de dois tons básicos e um arranjo dominado por sintetizador e baixo com marcação e ritmo bastante fortes, repetindo o trabalho de Deacon no mesmo tipo de execução em Crazy Little Thing Called Love.

Friends Will Be Friends, outra composição de Deacon e Mercury, fecha esse primeiro lado do disco com bateria e piano assumindo padrões bem simples para uma música longa e com letra reflexiva e emocional como esta. Temos aqui seis refrões, dois deles construídos com apoio instrumental diversificado (solo ou ponte) e outros dois aliados, como em uma “sequência infinita” a essas pontes. O controle vocal de Mercury é novamente posto à prova, como em One Year of Love, alternando versos cantados com bastante docilidade, dependendo de sua necessidade lírica (e vejam que a letra exigiu dos músicos um preciso “tom dramático” para não fazer a canção aparentar-se desalentada ou fatalista, já que há mais de uma forma de interpretá-la) ou com força vocal na medida certa para os momentos de maior atitude do eu-lírico.

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A abertura do lado dois é feita pela magnífica Who Wants to Live Forever, composição de Brian May cantada por ele (alguns versos, apenas) e Freddie Mercury em uma de suas mais tocantes interpretações. Trata-se de uma balada épica (na mensagem e na musicalização) e que também ganhou uma versão ao instrumental, liderada pelo piano, que ouvimos, assim como a versão cantada, em Highlander. Na abertura, temos um órgão eletrônico e uma orquestra acompanhando a voz doce de Brian May, dando a tônica poética da canção, que começa a ganhar contornos épicos (com certa ambiguidade entre tonalidades maiores e menores) a partir da entrada de Mercury na estrofe seguinte, já precedida por um pequeno coro alternativo cujo arranjo carrega a mesma intenção, só que mais doce, que a do coro de Thank God It’s Christmas (1985). Após o solo de May e a parte orquestral temos uma maravilhosa sequência de estrofe mais voz em crescendo e coro nos dois grandiosos refrões da faixa, seguidos de uma pequena ponte minimalista liderada pela guitarra, uma progressão de acordes (terceiras) decrescentes executados pela orquestra, um arpejo no órgão eletrônico simulando o da introdução e de novo a voz de May concluindo a obra: who is forever anyway? É definitivamente uma faixa introspectiva, de um significado humano tremendamente forte e concebido musicalmente com perfeição. De longe, a minha canção favorita do disco.

Gimme the Prize (Kurgan’s Theme)Don’t Lose Your Head são dois interessantes experimentos da banda, sendo a segunda faixa uma música experimental com toas as letras, composta por Taylor, que adicionou aqui um novo capítulo ao experimento do disco anterior, Machines (or ‘Back to Humans’), só que dessa vez, acertando em cheio.

Assim como a maioria das obras compostas para Highlander, Gimme the Prize utiliza-se de uma frase/termo do roteiro para contar uma história. A faixa é um rock pesado que exige de Mercury imponentes vocais agudos, que ele consegue entregar como nunca, uma de suas últimas gravações a exigir tanto de sua potência vocal. Já Don’t Lose Your Head, que não faz parte da trilha sonora de Highlander, tem uma maior atenção para a musicalização, com excelente trabalho instrumental e também vocal, todos localizados de forma acertada dentro do experimento pretendido (e sem os exageros de Machines). No fim, acaba sendo uma continuação musical e conceitualmente contrastante de Don’t Try Suicide, mas é preciso entender a sua proposta — experimentar — e relevar um pouco a sua inclusão em um álbum de caráter mais pop, por assim dizer.

O disco se encerra com Princes of the Universe, música de abertura de Highlander. Surpresa agradabilíssima do disco, Princes é retorno de Mercury ao hard rock, algo que não víamos de suas composições solo desde Let Me Entertain You, ou seja, uma espera de oito anos até que ele voltasse a escrever dentro desse gênero, espera que valeu a pena. A faixa finaliza o disco com chave de ouro, formada por inúmeros blocos de origem musical diferente (solo, coro, ponto e estrofe com finalização, acompanhamento, progressão e tons diferentes), algo muito inteligente e muito difícil de se executar, principalmente porque a harmonia da canção não possui um parâmetro definitivo, mudando-os ao bel prazer ao longo das estrofes e do blocos como uma espécie de surpresa escondida. Isso sem contar com o início bombástico, a capella; os arranjos melódicos para as vozes (o Queen parece que se tornou cada vez melhor e mais ousado ao juntar os vocais em coros e frases de apoio), e a continuação incansável de dinâmicas: introdução, conexão instrumental (destaque para guitarra no início e bateria e baixo no final), versos em farta riqueza instrumental, coro (com mudança no ritmo), longa extensão instrumental com um pré-solo e um solo, além da preparação para as retomadas antes do final rápido e objetivo. Uma obra-prima.

A Kind of Magic é uma espécie de disco-surpresa para quem acompanha o Queen cronologicamente, pois vê aqui interessantes retornos ao passado, um passo para o futuro e a representação da identidade da banda à época em que o disco foi gravado. Com uma produção perfeccionista (Queen, Reinhold Mack e David Richards) e um início cinematográfico, o álbum reuniu um um forte sentimento oitentista e ao mesmo tempo atemporal, tendo diversos pontos musicais para considerar e executando cada um desses pontos com maestria. O Queen estava de volta, mas infelizmente, não por muito tempo: A Kind of Magic foi o último álbum da banda a receber uma turnê de divulgação. O disco seguinte, The Miracle (1989), já seria parte do “período recluso” e conceitualmente mais sombrio do quarteto. A retomada e o rumo para o final.

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Nota sobre fontes: eu traduzi trechos de informações em entrevistas com os membros da banda para diversas redes de TV e rádio ao longo dos anos; compilei informações técnicas específicas expostas no livro Queen – História Ilustrada da Maior Banda de Rock de Todos os Tempos, de Phil Sutcliffe (e também de encartes de CDs, documentários de DVDs e livros que acompanham os boxes Especiais da banda); trouxe diversas informações sobre decisões ou discussões de bastidores, processo de criação das músicas, uso específico de instrumentos, descrição de cenas da produção dos discos, estilos ou comparações entre canções de diversas Eras da banda através de um processo criativo de caráter biográfico do documentário Queen – Days of Our Lives e também de artigos em diversas páginas ligadas à banda, aos estúdios e principalmente aos produtores dos discos.

Aumenta!: One Vision
Diminui!: 
Minha canção favorita do álbum: Who Wants to Live Forever

A Kind of Magic
Artista: Queen
País: Reino Unido
Lançamento: 2 de junho de 1986
Gravadora: EMI, Parlophone (UK) e Capitol, Hollywood (EUA)
Estilo: Rock, Hard Rock

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