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Crítica | A Lenda de Candyman

por Leonardo Campos
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Um retorno triunfante para o clássico slasher tardio O Mistério de Candyman, lançado em 1992 e marco na história deste subgênero profícuo para discussões sobre temáticas sociais sempre importantes. Sem levar em consideração Candyman 2: A Vingança e Candyman 3: Dia dos Mortos, a nova empreitada neste universo dialoga com a produção dirigida por Bernard Rose e atualiza o mito, retomado agora numa perspectiva que parece a sina da humanidade: o racismo estrutural, a gentrificação, a coerção policial seletiva, dentre outros temas, num filme que pode ser decepcionante para aqueles que buscam um slasher quintessencial, intensamente violento e com uma trilha de corpos numerosa. O terror em A Lenda de Candyman está na análise do tecido social urdido pelas relações complexas de um mundo cada vez mais opressor, violento, mesmo que as oportunidades para debate sejam mais significativas que o disposto no passado. Focada no estilo e com muitos momentos de elucubração estética, a cineasta Nia DaCosta gerencia uma equipe focada no esmero estético de seu filme, produção que é mais filosófica que o esperado por aqueles que esperavam ver Candyman destroçando múltiplas vidas em cena.

Dito isto, importante ressaltar também que a diretora também assume o texto de A Lenda de Candyman, em parceria com Jordan Peele e Win Rosenfeld, equipe que faz boas escolhas dramáticas nesta nova roupagem, adaptando a história para uma era complexa, cheia de tabus e com o racismo ainda a minar a perspectiva de muitas vidas negras. Como sabemos, Candyman é o espírito de Daniel Robitaille, um homem afro-americano assassinado por ter engravidado uma mulher branca. Violentamente aniquilado, uma de suas mãos foi substituída por um gancho, enquanto o seu corpo, besuntado com mel, atraiu as abelhas que terminaram o trabalho sanguinário de homens brancos que jamais aceitariam, na ocasião, um relacionamento interracial. Assim, observamos que “esse vilão” já foi uma vítima. E, num processo de reparação e ajustes históricos, tem a sua história contada numa perspectiva negra, afinal, na versão de 1992, a acadêmica loira e branca interpretada por Virginia Madsen é a porta-voz de sua tragédia.

O jogo, agora, é outro. Na lenda, aquele que ousar chamar o nome de Candyman cinco vezes diante do espelho pode atraí-lo e encontrar a morte dolorosa e sanguinária. O mito, tal como a teoria literária nos reforça, precisa ser recontado para evitar cair no esquecimento. É o que aconteceu em 1992 e agora retorna em 2021. Tendo John Guleserian na direção de fotografia, a narrativa investe em planos e enquadramentos sofisticados, milimetricamente calculados para construir pinturas autênticas em movimento, num projeto de esmero que atravessa um crescente de qualidade visual de sua abertura ao desfecho. Para funcionar tão bem, a condução musical de Robert Aiki Aubrey Lowe se apresenta assertiva e é possível perceber alguns ecos da trilha sonora de Philip Glass para a produção de 1992. Outro ponto de destaque é o design de produção, assinado por Cara Brower, também focado nas peculiaridades do universo de Candyman e dos protagonistas da história, setor importante para a imersão do espectador no contexto narrativo oferecido para a nossa entrada. Em linhas gerais, em A Lenda de Candyman, temos a junção de aspectos estéticos bem-sucedidos, em prol da qualidade audiovisual do filme.

Mas, afinal, e a história? O argumento da produção, caro leitor, não é complexo. A sua condução sim. Observe: na trama, os projetos habitacionais do bairro Cabrini Green mudaram de forma. O espaço, antes destinado aos moradores humildes da região, agora é o ambiente domiciliar de pessoas pertencentes a um nível econômico mais elevado. O destino dos que ali habitavam, anteriormente, não importa para os favorecidos desta lógica capitalista rotineira. Neste local, há uma lenda urbana sobre um assassino sobrenatural que possui um gancho no lugar de uma das mãos, invocado por aqueles que ousam repetir o seu nome cinco vezes no espelho. O filme explica de maneira assertiva essa história ao espectador, por meio de um habilidoso teatro de sombras, nos permitindo compreender o que aconteceu no passado, para melhor adentrar nas propostas reflexivas do presente que retrata a vida de Anthony McCay (Yahya Abdul-Mateen II), um artista que se muda com sua namorada, Brianna Cartwright (Teyonah Parris), para um condomínio de luxo em Cabrini Green, habitado em sua maioria por millenials, isto é, as gerações nascidas entre a década de 1980 e o final do século passado, também conhecida por geração Y.

Anthony, de carreira aparentemente sólida na pintura, começa a atravessar um angustiante bloqueio, enquanto a sua namorada, uma galerista que também enfrenta tensões com o seu chefe branco e machista, leva o trabalho segurando as pontas para não despencar. As coisas começam a mudar quando num determinado dia, o casal recebe a visita de Troy (Nathan Stewart Jarret), o narrador que resgatará essa história macabra que destaca o racismo numa versão, traduzida na contemporaneidade por outras formas de lidar com os corpos negros massacrados pelo racismo, tema que muitos ainda acreditam ser parte de um mito, haja vista a crença numa suposta democracia racial, hipótese refutada cotidianamente pelos casos de violência policial e outras coerções do nossos sistema. Estagnado em seu fazer artístico, Anthony se deixa levar pela atmosfera sombria e pela natureza aterrorizante do mito de Candyman, envolvendo-se com o conteúdo e trazendo elementos desse universo para o seu trabalho, sem saber que neste processo, abriu portais que desafiarão a sua própria sanidade e o guiarão para um final quase certo, envolto numa bruma enigmática de dor e tragédia.

Político, A Lenda de Candyman também é um filme sobre a gentrificação cada vez mais rotineira e descaradamente violenta em nossa sociedade. E não é coisa apenas dos Estados Unidos não, basta lembrar de incêndios criminosos por aqui, aparentemente conectados com a especulação imobiliária tão ansiada pela elite despreocupada com as vidas que envolvem projetos do tipo. Oriundo de “gentry”, expressão em língua inglesa que designa pessoas que fazem parte de espaços nobres e elitizados, o termo delineia o processo de modificação do espaço urbano, geralmente as áreas periféricas, remodeladas para atender aos interesses imobiliários que transformam esses espaços em centros comerciais ou redutos domésticos para as classes mais favorecidas, na maioria das vezes, desconsiderando os habitantes que geralmente não tem mais opções para essa espécie de diáspora urbana massacrante. É um tema delicado e trabalhado no filme de maneira orgânica, sem militância vazia ou engajamento aleatório. Ademais, uma produção também certeira na abordagem da exploração do corpo e da arte dos afro-americanos. Fique atento ao tom metafórico das abelhas em ataque e defesa e reflita se o filme não ganhou novos significados pós George Floyd e intensificação do movimento black lives matter.

A Lenda de Candyman (Candyman) — Estados Unidos, 2021
Direção: Nia DaCosta
Roteiro: Jordan Peele, Win Rosenfeld, Nia DaCosta
Elenco: Yahya Abdul-Mateen II, Teyonah Parris, Nathan Stewart-Jarrett, Colman Domingo, Kyle Kaminsky, Vanessa Williams, Rebecca Spence, Carl Clemons-Hopkins
Duração: 96 min.

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