Home FilmesCríticas Crítica | A Lenda do Cavaleiro Verde

Crítica | A Lenda do Cavaleiro Verde

Subvertendo expectativas.

por Ritter Fan
18,6K views

Existem alguns níveis possíveis de apreciação de A Lenda do Cavaleiro Verde, épico medieval que David Lowery (Sombras da Vida) dirigiu e escreveu com base no famoso e importantíssimo poema do século XIV do chamado ciclo arturiano Sir Gawain e o Cavaleiro Verde (título esse que só viria centenas de anos mais tarde, já que o manuscrito original não tem nenhum), de autoria desconhecida. Talvez o mais chamativo e fácil de gostar desses níveis seja o visual, o de construção de mundo que permite a imersão neste fascinante universo de fantasia, ainda que ele, sozinho, talvez não seja suficiente para sustentar a narrativa, pelo que é necessário mergulhar em uma segunda camada, esta dedicada à substância que, por seu turno, pode ser dividida em pelo menos três sustentáculos, a subversão das Lendas Arturianas, a jornada de autoconhecimento de Gawain e, claro, o permanente subtexto de conflito entre o Cristianismo e o paganismo.

Mas estou me adiantando. Na verdade, antes de chegar a estes aspectos, começarei com os problemas de A Lenda do Cavaleiro Verde. Considerando que, em termos puramente narrativos, o que realmente conta é a jornada de Sir Gawain (Dev Patel) de Camelot até a Capela Verde, onde ele deverá encontrar-se com o cavaleiro do título para cumprir sua promessa de deixar ele golpeá-lo da mesma maneira que ele (Gawain) o golpeou um ano antes como parte de um desafio sobrenatural, o longa perde oportunidades de ouro de nos apresentar a seu protagonista. Gawain é quase um não-personagem, um recorte em cartolina que tem como principais características ser o sobrinho do adoentado e frágil Rei Arthur (Sean Harris) e autodepreciar-se muito claramente em razão de seu parentesco, que ele parece reputar como a única razão para ele estar ali, na mítica Távola Redonda.

O roteiro pouco nos oferece sobre o Gawain pré-jornada e, mesmo durante a jornada, o que vemos são, apenas, flashes de personalidade sem o tipo de profundidade que o próprio longa pede ao dedicar grande parte de sua duração justamente aos obstáculos que ele enfrenta, algo que o poema original justamente não faz e, portanto, não causa o desequilíbrio. E o não desenvolvimento de Gawain em dois terços do longa é que faz com que justamente essa enorme parte do filme pareça vazia de conteúdo no que se refere ao seu protagonista. Entenderei, portanto, quem considerar a obra um exemplo de forma sobre substância, mas esse é um reducionismo com que, porém, não concordo, como deixarei claro mais a frente. Meu incômodo, portanto, refere-se ao Gawain pré e pós jornada, com sua “revelação” ao final, por assim dizer para não entrar em detalhes e dar spoilers, não decorrendo fluidamente do que veio antes e fazendo os obstáculos em seu caminho serem quase que incômodos para permitir a minutagem avantajada do longa. Dev Patel também não ajuda muito, sendo sincero, já que o ator não consegue inserir carga dramática suficiente em seu personagem para torná-lo alguém identificável e relacionável para além do típico deslumbramento de olhar esbugalhado e boca entreaberta que o ator usa como suas marcas registradas em praticamente todos os seus trabalhos.

Em circunstâncias normais, os problemas que detectei no longa seriam suficientes para derrubá-lo consideravelmente, mas a grande verdade é que Lowery se esmera no que gravita ao redor de Sir Gawain, criando um filme bem maior que seu personagem e que é, em muitos aspectos, único em concepção e execução. Seu primeiro grande acerto é na construção de atmosfera, algo que só reputo possível com abordagens lentas, de incrementos discretos. Por essa razão é que a duração razoável da fita, neste caso, não incomoda, já que o objetivo é permitir a concepção de um mundo que é simultaneamente realista e mágico, mas sem que uma característica imponha-se sobre a outra (como a magia se impõe sobre a realidade no magnífico Excalibur), em um equilíbrio realmente fora do comum.

Camelot é suja e, como o Rei Arthur e a Rainha Guinevere (Kate Dickie), velha, caindo aos pedaços e, principalmente, doente. É como uma chaga judaico-cristã cravada profundamente em uma terra secular espalhando destruição, doença e morte por onde ela vai, seja na desolação profunda dos campos sem vegetação nas imediações da cidade fortificada e fechada em si mesmo como uma ostra, sejam nas guerras que leva aos homens, algo visto no campo de batalha que Gawain atravessa. O contraste com a natureza virgem e mágica que, a certa altura, passa a cercar Gawain, chega a ser chocante, mas sem que Andrew Droz Palermo (que trabalhou como diretor de fotografia também em Sombras da Vida) valha-se de saídas fáceis, como o uso de paisagens naturais deslumbrantes, daquelas de cartão postal. Nada disso. Existe um senso constante de ameaça que ele constrói, ameaça essa que funciona dos dois lados, ou seja, o quanto o mundo pagão representa de ameaça à religião católica e vice-versa, em um constante e inasfastável conflito que, aliás, Lowery extrai das profundezas das próprias Lendas Arturianas, que sempre foram antitéticas nesse aspecto, com a ironia de um rei cristão que deve sua própria existência à mágica pagã sendo reforçada aqui como poucas vezes se viu antes.

E é assim que chegamos à subversão das Lendas Arturianas. Mesmo quem nunca leu nada sobre elas (leiam!), no mínimo tem alguma ideia de que o que as informa em linhas gerais, são a religião (Santo Graal), magia (Merlin, Morgana) e os atos nobres e valentes de cavalheirismo (o sacrifício de Arthur). O poema original mantém – ajuda a construir, na verdade – esses pilares e Lowery, em sua adaptação, pega o martelinho e o formão de escultor e vagarosamente desfaz essas imagens, sem, porém, desfazer a obra primígena. É um trabalho cuidadoso, detalhista, que já começa com a antítese representada de um lado pela altivez, tamanho e imponência do Cavaleiro Verde que é como um Groot sóbrio, sinistro, mas nobre e honrado e, por outro, pela decadência da corte de Arthur, barulhenta, covarde (ninguém se levanta para se oferecer no lugar do rei a não ser Gawain e mesmo Gawain só o faz para provar que ele é mais do que o parente do rei), escura, suja e doente. É o já mencionado conflito entre a natureza (paganismo) e o sacro (cristianismo) logo na primeira sequência de relevância, mas que é também simultaneamente reiterado pela oposição do ritual da mãe de Gawain (Sarita Choudhury) às coroas santas e angelicais de Arthur e Guinevere, sempre mantidas em irônico destaque.

Com isso, a nobreza e a pureza dos cavaleiros é relativizada e desmistificada. São homens apenas. Gawain – que, reitero, teria se beneficiado muito de mais construção pré-jornada no lugar da elipse temporal que se segue ao desafio – é mesmo aquilo que ele acha que ele é, ou seja, o menos valoroso de todos ali na corte de Arthur, o menor entre os grandes, alguém que só existe à sombra do tio. Sua nobreza é enevoada, um conceito apenas, algo que vemos por sua incapacidade de estabelecer algum tipo de compromisso mais sério com Essel (Alicia Vikander em seu primeiro de dois papeis no filme, dois lados de uma mesma moeda). Os eventos que maculam sua jornada, literalmente despindo-o, retirando-lhe até mesmo seu amado cavalo Gringolet (que também se escreve com Y), o desfazem completamente, com sua chegada ao misterioso castelo do Lorde sem nome (Joel Edgerton) e sua Dama (Vikander em seu segundo papel) e da misteriosa senhora cega (Helena Browne) que é, claro, Morgana Le Fay, ainda que Lowery não preocupe em sequer dar pistas disso, levando-o ao fundo do poço, somente para o conflito com o Cavaleiro Verde revelar quem Gawain realmente é, ou pode ser.

Aliás, se eu tenho reclamações sobre os dois terços iniciais do longa em termos de construção do personagem, a maior razão para isso está na excelente sequência pré-degola de Gawain, em que ele vive sua vida toda, com Lowery provavelmente tendo se inspirado na abordagem clássica de Martin Scorsese em A Última Tentação de Cristo, mas também subvertendo sua lógica. Trata-se de um momento excelente, muito bem executado, mas que teria sido perfeito se Gawain, a essa altura, fosse um personagem completo e não apenas um ideal de personagem, quase um rascunho. A vantagem é que sua jornada de autoconhecimento é de fácil absorção, pelo que a sequência scorsesiana funciona quase que de forma independente de todo o restante. E o final ambíguo – com direito a cena pós-crédito – foi uma escolha ousada que deve irritar muita gente, mas que eu adorei justamente porque combina com a aura mágica do longa.

A Lenda do Cavaleiro Verde tem o grande mérito de trazer as Lendas Arturianas novamente à tona sem os fogos de artifício bobalhões que temos visto ultimamente (Guy Ritchie, estou falando de você, ainda que não só de você), retornando às suas bases e, melhor ainda, colocando-as de cabeça para baixo. De quebra, a construção de mundo do design de produção e da fotografia merecem comenda e conseguem até mesmo compensar alguns dos problemas estruturais que o longa tem por Lowery parecer talvez enamorado demais com a estética. Não é um filme trivial ou fácil de se ver pelo seu ritmo e pelas poucas respostas diretas que oferece, mas é uma obra muito bonita que propõe discussões interessantes quando vamos um ou dois degraus abaixo do deslumbramento visual.

A Lenda do Cavaleiro Verde (The Green Knight – Irlanda/Canadá/EUA/Reino Unido, 2021)
Direção: David Lowery
Roteiro: David Lowery (baseado em poema de Pearl Poet/Poeta Pearl)
Elenco: Dev Patel, Alicia Vikander, Joel Edgerton, Sarita Choudhury, Sean Harris, Ralph Ineson, Kate Dickie, Barry Keoghan, Erin Kellyman, Megan Tiernan, Emmet O’Brien, Helena Browne
Duração: 130 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais