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Crítica | A Liberdade (2001)

A paz e a violência dentro da rotina de subsistência de um homem numa floresta.

por Michel Gutwilen
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Uma câmera, um homem e uma floresta. O primeiro filme de Lisandro Alonso, A Liberdade, é esta grande negociação entre Cinema, Homem e Natureza. Apesar de sua duração inferior aos 80 minutos, é possível dizer que esta obra argentina trabalha com a ideia de “tempo prolongado”, com uma longa duração em cada um de seus planos e, dentro deles, a observação de eventos banais. Nesta narrativa, alguma má língua poderá dizer que nada acontece, mas é a partir desse suposto “nada” que tudo acontece. Seus “acontecimentos”, que acompanham a rotina de um lenhador isolado na floresta, são tão escassos que é possível listá-los: Ele corta árvores e raspa a madeira; anda pelo nada; defeca no mato; vai para civilização vender a madeira, fazer compras e ligar para sua família; dorme; captura, mata, cozinha e come um tatu. Fim.

Sobretudo, uma das principais características de A Liberdade é o seu grande silêncio humano e livre de poluição sonora, daqueles que que te fazem olhar para si mesmo e perceber o quão silenciosa e solitária também pode ser a experiência cinéfila de assistir a um filme, no qual nosso silêncio de espectador entra em comunhão com o do protagonista. Logo, é justamente essa ausência de som que permite sentir a natureza como uma grande entidade viva e protagonista dessa história. Os cantos dos pássaros e os zunidos dos insetos, o vento que toca as plantas, a chuva caindo e o fogo queimando. Por outro lado, é o mesmo silêncio que transforma certos barulhos ruidosos em grandes atos de violência, intrusos naquela paz, como no caso da estrondosa motosserra que é ligada para cortar as árvores. De mesmo modo, na segunda metade do longa em que o protagonista vai para a “civilização” e passa um tempo dirigindo o carro, o ruído de seu motor soa como outro elemento não-pertencente nesse ecossistema. 

Dependendo de como alguém lida com as relações entre homem e natureza, A LIberdade pode ser um filme muito meditativo mas, por outro lado, também exalar uma grande violência (o que não o torna ruim de modo algum ruim, apenas um outro tipo de experiência). Particularmente para mim, que escrevo, as cenas das árvores sendo cortadas e todo o processo que envolve o tatu sendo morto (e agonizando no meio) para depois ser cozinhado me trazem uma grande sensibilidade. Só que é aí que entra uma questão crucial: La Libertad não é “cruel”, mas um olhar para a vida. Escolher não elipsar tais processos violentos não é uma escolha imoral feita chocar, mas que justamente dá um espaço, quase que imparcial, para que sinta e se reflita sobre esta dualidade ambígua que existe no modo como o homem existe dentro da natureza. 

Afinal, o lenhador obviamente precisa sobreviver, cortando árvores para se inserir dentro de uma cadeia econômica e ter subsistência (fora os pequenos prazeres como comprar um cigarro e refrigerante), assim como mata um animal, se inserindo em uma cadeia alimentar, para não passar fome. Ora, o homem usa da natureza do jeito mais econômico dentro de seu processo de sobrevivência no mundo, mas não é por isso a violência neste processo não existe. Ou seja, em La Libertad, aceita-se a beleza do mundo assim como a sua violência dentro de uma compreensão de que todos esses processos fazem parte da experiência da vida. Ao mesmo tempo, Alonso atesta que, nos tempos atuais, mesmo o mais isolado dos homens de algum modo ainda precisa se inserir dentro de uma certa ideia de comunidade e economia para sobreviver. Seria este homem livre, como sua vida na floresta parece indicar, ou ele faz parte de um ciclo (o filme acaba como começa) do qual não é possível sair?

Enquanto isso, no meio deste jogo, está o Cinema mediando esse olhar através da câmera de Lisandro Alonso. Como já dito, Alonso filma o que é calmo e o que é violento com a mesma intensidade. Pode-se dizer que há momentos em que ele é um pouco intruso demais, até nos momentos mais privados (acompanhando o protagonista defecando), mas também há momentos em que a câmera se afasta, quase fazendo o protagonista desaparecer na natureza em planos gerais. Há momentos em que a câmera enquadra o protagonista e momentos em que ele sai do plano para Alonso olhar o mundo ao seu redor — como na brilhante cena em que ele dorme e a câmera vai, livre, para a natureza, quase como um sonho apichatpongniano. É uma câmera que é testemunha invisível deste tratado que existe desde os tempos primitivos, mas é câmera que também ganha vida própria. A Liberdade é um filme que não se pode dizer se é ficção ou documentário, se é violento ou calmo, se é primitivo ou moderno, e, acima de tudo, se o que ele mostra é uma liberdade, como seu título indica, ou uma prisão dentro de uma rotina? Paradoxos de um cinema do início do séc. XXI.

A Liberdade (La Libertad) — Argentina, 2004
Direção: Lisandro Alonso
Roteiro: Lisandro Alonso
Elenco: Misael Saavedra, Humberto Estrada, Rafael Estrada, Omar Didino, Javier Didino
Duração: 73 mins.

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