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Crítica | A Longa Marcha – Caminhe ou Morra

Sem esperança.

por Ritter Fan
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A premissa do romance A Longa Marcha, primeiro que Stephen King escreveu, mas que ele só publicaria em 1979, sob seu pseudônimo Richard Bachman é fascinante e muito apropriado para a literatura. Nela, 100 jovens (50 no filme) fazem uma caminhada em que ninguém pode andar em velocidade inferior a quatro milhas por hora ou 6,4 km/h (três mph ou 4,8 km/h no filme) por três vezes em uma mesma hora, sob pena de ser fuzilado por soldados que acompanham a jornada, e que só acaba quando só há um sobrevivente. É o laboratório literário perfeito para o desenvolvimento de personagens, já que tudo depende muito fortemente de diálogos e das interações entre os protagonistas e entre eles e os diversos coadjuvantes, com um então jovem King acertando em cheio na forma como aborda cada um deles e como ele consegue ecoar, em pouco mais de 300 páginas, o sentimento coletivo de um país em uma época complicada, no auge da Guerra do Vietnã.

Mas as mesmas circunstâncias que tornam a premissa valiosa para a literatura só criam dificuldades para sua transposição para o Cinema. Afinal, se o filme se aproximasse minimamente do material fonte, ele precisaria lidar com toda a ação durante a movimentação constante de seus personagens, o que torna as atuações mais complexas e a captura delas pelas câmeras um desafio por si só. E o roteiro de JT Mollner não inventa moda e faz justamente o que seria um pesadelo cinematográfico, ou seja, foca em diálogos, foca no estabelecimento da conexão entre jovens que, na manhã de determinado dia, começaram a caminhar juntos para a morte quase certa sob a  vigilância constante de soldados pronto para atirar. Sustentar uma narrativa dessas pelo tempo regulamentar de uma obra cinematográfica, mesmo que ela seja pontilhada pelo sofrimento dos personagens e suas violentas mortes, não é um trabalho trivial e tudo dependeria de dois fatores essenciais, a minuciosa escalação de um elenco perfeito de jovens atores e uma direção que soubesse privilegiar os personagens e não o espetáculo.

Francis Lawrence, egresso da tematicamente semelhante franquia Jogos Vorazes (com exceção do primeiro filme), parecia a escolha óbvia, mas seus trabalhos com longas de orçamento bem mais polpudos – seu filme anterior “mais barato” foi Água para Elefantes, que custou 38 milhões de dólares, praticamente o dobro de A Longa Marcha – poderia transformar o caráter introspectivo e pessimista da narrativa em um espetáculo repleto de fogos de artifício vazios. No entanto, Lawrence soube ajustar-se esplendidamente à natureza mais modesta do texto de JT Mollner com um trabalho delicado que não se furta em deixar as lentes bem próximas de seus personagens, o que causa ao mesmo tempo incômodo no espectador e uma imediata empatia com o drama de cada um, com uma fotografia apropriadamente lúgubre de Jo Willems, parceiro de Lawrence desde Em Chamas, capturando as tomadas em locação sem nenhum tipo de embelezamento, com uma direção de arte de Kathy McCoy e cenografia de Scott Rossell que acompanham essa tendência realista, e, finalmente, com uma discreta, não intrusiva, mas poderosa trilha sonora composta por Jeremiah Fraites que sabe pontuar sentimentos e emoções sem telegrafá-los.

Mas isso de nada valeria não fosse a escalação de Cooper Hoffman e David Jonsson nos papeis centrais de Ray Garraty (caminhante #47) e Peter McVries (caminhante #23). Os dois jovens atores já tiveram excelentes papeis em sua filmografia ainda em desenvolvimento, com Hoffman, filho do sensacional e saudoso Philip Seymour Hoffman  tendo vivido Gary em Licorice Pizza e Jonsson tendo assombrado como o sintético defeituoso Andy, em Alien: Romulus. O fato de eles não serem ainda grandes estrelas imediatamente reconhecíveis era importante para A Longa Marcha, um filme cujo tom simplesmente não permite que a atenção do espectador seja desviada por questões tão triviais e vazias como a fama de seu elenco. Os dois, quase que simultaneamente – digo quase, pois o personagem de Hoffman nos é apresentado um ou dois minutos antes do de Jonsson – não só conseguem estabelecer uma conexão genuína e instantânea no primeiro segundo em que eles aparecem ao mesmo tempo diante das câmeras, como essa conexão vai sendo espetacularmente aprofundada a cada minuto de filme, com ambos agindo com uma naturalidade de se tirar o chapéu e conseguindo passar ao espectador cada dúvida, cada dor, cada momento de realização e de crescimento pessoal que eles têm na longa jornada mortal de centenas de quilômetros.

Só que eu seria muito injusto se deixasse de salientar que toda a constelação do elenco jovem que gravita ao redor de Hoffman e Jonsson não foi também fruto de um trabalho inspiradíssimo de escalação e de atuações dedicadas e complexas. Garrett Wareing como o soturno Stebbins (#38), Tut Nyuot como o jovial Art Baker (#6), Ben Wang como o sábio Hank Olson (#46) e Charlie Plummer como o problemático Gary Barkovitch (#5) são grandes achados, assim como todos os demais com participações ainda menores, mas não menos marcantes. E Lawrence percebeu isso, não tenho dúvida, traçando toda sua estratégia de filmagem em prol desse grupo de atores, deixando-os confortáveis o suficiente em tomadas que devem ter sido rigorosas e difíceis em razão de eles terem que estar todos andando o tempo todo em locações reais e não em estúdio, sem auxílio visível de computação gráfica para a composição de cenários. É o mais próximo que um “filme de câmara” pode chegar de um filme convencional, ou vice-versa.

Em termos de roteiro, a adaptação de Mollner bebe generosamente do material fonte, fazendo as alterações necessárias para a conversão de mídia. Com isso, a caracterização de que estamos em uma distopia é mais forte, pois a distância do pessimismo da época em que o livro foi escrito em razão da Guerra do Vietnã está distante demais do público atual, pelo que era necessário criar “artificialmente” um contexto desesperançoso semelhante, algo que fica estabelecido naturalmente pelos diálogos iniciais e pela carta de aceitação de Garraty para a marcha que aparece na tela de abertura. Por outro lado, as vidas sem rumo dos jovens que é a grande força do romance de King – o que torna a leitura desesperadora, vale dizer – eram impraticáveis em qualquer filme que tivesse a mínima pretensão de conseguir uma mínima bilheteria nos cinemas, pelo que Mollner molda o texto de King às expectativas modernas que sim, são mais “simplificadas. Com isso, especialmente Garraty ganha um norte muito específico trabalhado por meio de econômicos flashbacks que criam o contexto para ele estar ali na marcha. Não é algo que, pessoalmente, eu aprecie, até porque a lógica é bastante simplista, mas entendo o esforço do roteirista e gosto da maneira como ele ecoa essa situação em McVries, quando Garraty finalmente conta para o amigo. E o final ambíguo do livro quase que desaparece por completo, em troca de excelentes momentos tensos e de um final – falo mesmo do minuto final – que trai um pouco a lógica que vinha sendo estabelecida até ali, ainda que isso não seja exatamente um pecado mortal, mas sim quase que uma “exigência hollywoodiana”.

O papel do comandante da marcha, conhecido apenas como Major, foi ampliado, com Mark Hamill, que vive seu segundo papel seguido em longa baseado em obra de Stephen King (o anterior foi A Vida de Chuck), funcionando bem como uma caricatura humana que está sempre presente em momentos críticos da caminhada. A necessidade de um vilão palpável, outra “exigência hollywoodiana”, certamente ditou essa escolha, mas a conexão entre o Major e eventos passados é um dos fatores que cria aquela sensação levemente maniqueísta do roteiro, mesmo que Lawrence, na direção, dê foco absoluto às interações entre os jovens, recuando-se até mesmo de explorar a violência pela violência, o que leva a surpreendentemente poucos momentos de horror gráfico, o que vejo com bons olhos. A Longa Marcha pode ser um filme desagradável de se assistir, ainda que não tão desagradável quanto foi ler o romance (mas afirmo isso positivamente, por mais incongruente que possa parecer), mas existe uma poderosa mensagem de conexão humana que subjaz em tudo o que é mostrado e que cria aquela luz no fim do túnel que suaviza um pouco a experiência acachapante. Um pouco de alívio – mas só mesmo um pouco – depois de tantas sombras.

A Longa Marcha – Caminhe ou Morra (The Long Walk – EUA, 2025)
Direção: Francis Lawrence
Roteiro: JT Mollner (baseado em romance de Stephen King)
Elenco: Cooper Hoffman, David Jonsson, Garrett Wareing, Tut Nyuot, Charlie Plummer, Ben Wang, Jordan Gonzalez, Joshua Odjick, Mark Hamill, Roman Griffin, Judy Greer, Josh Hamilton, Noah de Mel, Daymon Wrightly, Jack Giffin, Thamela Mpumlwana, Keenan Lehmann, Dale Neri, Teagan Stark, Sam Clark, Emmanuel Oderemi
Duração: 108 min.

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