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Crítica | A Malandrinha

por Iann Jeliel
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A Malandrinha

  • SPOILERS moderados! A Malandrinha A Malandrinha A Malandrinha

A Malandrinha fecha a filmografia do John Hughes como diretor no seu lado mais dramático desde O Clube dos Cinco. A temática pedia um abandono parcial da sua comédia, ainda que a essência do diretor nunca traria suas histórias para um lado que não fosse o da leveza familiar. Contudo, fato é que seu último longa aposta veementemente no drama de modo a confirmar a possibilidade de uma nova configuração de família. Hughes, por mais que fosse o expoente da rebeldia juvenil, ainda era um cara conservador, e isso fica provado inclusive neste longa, que pode ser malvisto hoje por ter suas protagonistas em conflito entre sustentar o emprego ou arcar com a responsabilidade materna, sendo que é plenamente possível as duas coisas. Mas isso é um detalhe insignificante perto do que o longa deseja como mensagem edificadora.

Até porque, se analisarmos bem a figura masculina de Bill (Jim Belushi) e a forma como o entorno reage a sua condição social junto à filha adotiva, Curly Sue (Alisan Porter), e principalmente quando ambos eventualmente mudam de status, é possível captar que Hughes enxerga a problemática da visão social da paternidade/maternidade solteira para além do sexo. É um filme sobre os dois em si e qual o seu verdadeiro significado. Não é algo novo, é verdade, mas a lente do diretor certamente a enxerga de maneira especial e profundamente calculada pelos roteiristas. Dura muito pouco, por exemplo, a premissa de Bill e Curly serem vigaristas aplicando golpes para conseguirem sobreviver, porque o dilema posterior de Bill ser acusado de usá-la em benefício próprio é a verdadeira pauta inicial da sinopse. Não à toa, o golpe que leva à reunião dos personagens é conduzido na comédia como uma consequência imediata. O recurso do humor é usado aqui somente para possibilitar a coexistência dos personagens em um mesmo espaço sem parecer absurdo, porque, oras, nada é em uma comédia.

O filme precisa ser rápido para se dispensar dela parcialmente e conseguir estabelecer o drama circular entre os três que seria o sustentáculo inicial a mover a história. De modo bem hábil, o diretor fornece a transição sem deixar de utilizar bem a comicidade primária como base do tom narrativo. Tanto que, quando a comédia é resgatada posteriormente, já é uma solução dos conflitos naturalmente gerados pelo drama da condição social que parecia ser somente uma barreira para a comédia existir. A sensibilidade diferente de Hughes garante essas trocas com liberação de espaços a serem inseridos com doses de sentimentalismo particulares. A mais explorada inevitavelmente é Grey (Kelly Lynch), a personagem mencionada anteriormente como essa mulher que não consegue conciliar a profissão com a maternidade. Mais ou menos, a escolha de colocá-la como advogada não é arbitrária. O drama não é somente no congestionamento entre tempos de funções, mas também na condição moral da profissão que em algum momento tirou o sentimento empático da personagem, sendo resgatado pela dupla Bill e Sue.

Hughes coloca o exercício de advocacia em uma crítica bem particular de um universo individualista que impede as pessoas de enxergarem o que acontece ao seu redor. O ex-namorado ou ficante de Grey é meio que a representação estereotipada disso, que em algum momento se força como vilão para dar o direcionamento climático à história. Funciona porque Hughes sabe trabalhar essas funções de estereótipo básicas, mas certamente parece uma inserção não natural na trama. Como é, por exemplo, o malabarismo feito para encaixar o caso que Grey pega no início – de uma mulher que queria se divorciar, mas no fundo amava o marido – como uma solução para o ato de vilania de seu ex. Grey força o marido que tinha algum cargo importante a reverter a situação de Curly Sue no orfanato, chantageando-o por ter fotos íntimas dele. Tudo envolvendo a resolução desse caso infelizmente acaba trazendo material para a tal da visão antiquada e sexista do longa, pois, além disso, Grey pede a ele que continue com sua cliente, mesmo sem querer, dentro dessa chantagem, o que dá a entender que ele é gente ruim. Mas pouco importa, o conselho dado por Grey à mulher foi só para não ficar sem um homem, como ela está tomando a atitude de ter o seu fixo.

Algo que não faz o menor sentido, porque ela também estava escapando de um relacionamento tóxico, mas isso tudo foi mais um efeito de uma cena malfeita que constrói aquele estereótipo como algo negativo, sendo que não é necessariamente. Afinal, ele podia ter seus motivos para não querer mais a esposa, bem como Grey tem seus motivos para sair da profissão que colocava essa visão material à frente que não importava mais do que a construção genuína do amor entre ela e Bill e ela e Curly. Tanto que a cena derradeira de virada é quando ela sai nas ruas fazendo as traquinagens não ilícitas que Bill e Curly faziam antes de serem bancados, e ali é que ela encontra a felicidade que estava, e foi questionada durante o filme, faltante mesmo com tudo nas mãos. A família é o que importa, independentemente de ser tradicional ou não como lhe era cobrada em ambiente de trabalho. Apesar de toda a confusão mencionada, ela leva até a cena lindíssima da reunião dos três podendo viver uma vida juntos. Aquele final de aquecer o coração que Hughes tão bem sabe fazer.

Uma pena que A Malandrinha, como dito, seria a última vez dele atrás das câmeras. Apesar de ser melhor realmente no texto, o que o colocou como roteirista de mais coisas nos anos 90 e até início dos 2000, são nesses filmes que ele dirige e escreve que sua alma fala mais alto. E a alma de Hughes faz falta: de um cinema puro, vistoso, inocente, mas sempre moralmente muito discutível (no bom e às vezes no mau sentido. Não é, Gatinhas e Gatões?). Seu último filme pode não estar entre os seus grandes, mas fechou sua filmografia com a dignidade de um grande contador de histórias.

A Malandrinha (Curly Sue | EUA, 1991)
Direção: John Hughes
Roteiro: John Hughes
Elenco: Jim Belushi, Kelly Lynch, Alisan Porter, John Getz, Fred Thompson, Cameron Thor, Branscombe Richmond, Steve Carell, Gail Boggs, Burke Byrnes, Viveka Davis, Barbara Tarbuck, Edie McClurg
Duração: 101 minutos

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