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Crítica | A Mão e a Luva, de Machado de Assis

por Kevin Rick
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Publicado de forma seriada nos rodapés do jornal carioca O Globo, entre 26 de setembro e 3 de novembro de 1874, no formato de 20 folhetins, A Mão e a Luva seria posteriormente conhecido como o segundo romance do célebre escritor brasileiro Machado de Assis. A curta obra acompanha os amores e desamores de alguns jovens burgueses no Rio de Janeiro do século XIX, no conhecido retrato carioca de “Cortes” de Machado de Assis. A narrativa do livro circunda a afilhada de uma baronesa, Guiomar, que precisa escolher entre três pretendentes para o matrimônio: o sentimental Estevão, o calculista Luis Alves e o preguiçoso Jorge.

Desde o início da obra, em que vemos um exagerado Estevão pensando em se matar por causa da rejeição de Guiomar, sendo consolado por um não tão consolador e frio Luis Alves, Machado situa seu enredo em torno de diferentes retratos do amor. Como disse, Estevão é um típico romântico exagerado, construído narrativamente como uma espécie de personificação do ultrarromântico, isto é, o desenvolvimento do lado egocêntrico e melancólico da idealização romântica. Por outro lado, o amigo de faculdade de Estevão, Luis Alves, prega o cinismo em relação à paixão, prezando pela ambição da carreira e os interesses pessoais acima de encontrar sua cara metade.

Dessa forma, Machado de Assis busca a desconstrução do Romantismo ao colocar o amor como um sentimento baseado em perspectivas, classes sociais e interesses, e não como emoção idealizada. Vemos essa abordagem no próprio arco de Estevão, no qual o autor utiliza o ultrarromantismo e o pragmático para continuamente destruir a visão de mundo fantasiosa do personagem. Aliás, Machado utiliza alguns sutis toques de referências e caracterização nessa forma de metáfora, como o personagem ser um fã de literatura romântica, citar ShakespeareOs Sofrimentos do Jovem Werther e conversar de maneira poética.

Mas é a partir do momento que a narrativa coloca em foco os dilemas da protagonista Guiomar que descobrimos se tratar de um livro precursor do Realismo de Machado de Assis que se tornaria mais famoso e característico do autor a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Lidando o impasse matrimonial como uma balança de prós e contras, o escritor nos entrega um drama “romântico” em torno do jogo de interesses dos personagens. A baronesa vê em Guiomar uma substituta para sua filha falecida, além de querer o casamento com Jorge, um membro familiar e endinheirado, enquanto o próprio Jorge, um jovem burguês mimado, visa na personagem um dos poucos “objetos” inalcançáveis da sua vida; seu retrato do amor baseia-se no “possuir”.

E, finalmente, a protagonista é de longe a mais fria e realista entre os personagens. Ela entende seu (infeliz) papel socialmente diminuído de mulher à época, e como suas escolhas devem ser metodicamente pensadas para seu futuro, e não apenas no romance. Ela equilibra os desejos e atrações pessoais, a gratidão e dívida com a baronesa, seus próprios interesses e sua personalidade ambiciosa para encontrar o parceiro correto. Machado de Assis desenvolve em Guiomar uma personagem prática, materialista e mundana, de muitas formas antipática, especialmente para os leitores que esperam o Romantismo, mas em nenhum momento deixa de ser inteligentemente complexa. Seu retrato do amor baseia-se na necessidade.

Contudo, se o argumento temático da obra é um fantástico experimento social deste microcosmo carioca, além de ser um mordaz retrato realista do amor, o enredo e a orquestração narrativa ficam aquém das ideias. Machado de Assis peca em um primeiro momento na estrutura, culpa parcial do formato de folhetins, que transformam o romance em uma leitura de blocos isolados corridos pelo tamanho curto para o jornal, personagens que vão lentamente sendo esquecidos para dar espaço à trama principal e a falta de tempo para se aprofundar nos três pretendentes, que me leva a segunda problemática da obra: superficialidade. Com exceção de Guiomar, os personagens secundários são panfletos simples e inverossímeis para os diferentes retratos de amor, que funcionam melhor como discurso temático do que como personagens propriamente ditos, machucando e desconectando-se com o contexto realista.

Curiosamente, apesar de ter articulado bastante como A Mão e a Luva é uma desconstrução do Romantismo e tem a proposta de Realismo como mote, o romance é classificado cronologicamente como parte da “Fase Romântica” do autor, pré-datando sua revolucionária era de Realismo Brasileiro com obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. De muita formas soa como uma obra de transição, mais realista tematicamente do que no enredo dramático em si, ainda sofrendo de personalidades explícitas e irreais, além de uma certa romantização do realismo no desfecho otimista, mas acredito ser completamente impossível desqualificar este romance da abordagem posterior do escritor. É no mínimo uma obra “pré-realista”, com um autor encontrando seu estilo artístico. Mas no fim, o subtexto racional, a narração ironizando o Romantismo, a prosa referencial e objetiva (ainda que extremamente charmosa e refinada), nos carregam por um retrato do amor que foge da idealização e procura encaixes reais, como uma mão e uma luva.

A Mão e a Luva | Brasil, 1874
Autor: Machado de Assis
Publicação original: O Globo (Rio de Janeiro), em formato de folhetins, entre setembro e novembro de 1874
Edição lida para esta crítica: Ática; 21ª edição (3 dezembro 2019)
144 páginas

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