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Crítica | A Marca da Maldade

por Rafael W. Oliveira
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Ao lado de figuras lendárias como Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock, Orson Welles poderia facilmente figurar entre as personalidades influentes da história do cinema. Quase todos os filmes (se não todos) que apostam em uma narrativa não linear para narrar suas histórias prestam, ainda que inconscientemente, tributo ao complexo Cidadão Kane de Welles, tidos por muitos como uma das obras mais importantes da sétima arte. Mas além deste grande clássico, Welles foi responsável por outras grandes pérolas do cinema, dentre as quais, o grande A Marca da Maldade.

Neste filme, Welles não nos traz nenhuma novidade em termos de enredo, porém já nos conquista com a famosa sequência de abertura do filme: um plano-sequência de três minutos sem nenhum corte, onde vemos um homem armando uma bomba e colocando-a dentro de um carro. No melhor estilo de Alfred Hitchcock (influências, lembram-se?), Welles nos permite saber que uma tragédia irá acontecer, mas não o seu momento exato. Quando a explosão ocorre, o policial Ramon Miguel Vargas (Charles Heston) e sua esposa Susan Vargas (Janet Leigh) se veem envolvidos numa teia de conspiração os conceitos de ética do casal irão bater, frente a frente, com o do corrupto policial Hank Quinlan (Orson Welles).

Depois disto, o que temos é um fascinante estudo sobre o comportamento e a ganância do ser humano. O curioso é que Welles havia sido escalado para o projeto apenas como ator, porém o produtor Albert Zugsmith logo descobriu que o ator Charles Heston, na época um dos grandes galãs de Hollywood, havia aceitado seu papel no filme por acreditar que Welles seria o diretor. Com medo de que Heston abandonasse o projeto quando descobrisse, Zugsmith contratou Welles para dirigir a película, e logo o enredo sofreou grandes alterações de acordo com as vontades de Welles em imprimir sua marca ao projeto, e a atitude do estúdio ao término das filmagens, retirando 16 minutos de película (nem mesmo a comentada cena do plano sequência seria mantida), desagradou profundamente o diretor, que até chegou a escrever um memorando de 58 páginas exigindo que o trabalho de edição fosse corrigido, porém ninguém lhe deu atenção. Mas Heston, esperto como era, guardou uma cópia do memorando, e quando o longa completou 40 anos, o filme foi submetido a um trabalho de restauração pelas mãos do editor Walter Murch (que trabalhou em Apocalypse Now), e esta seria a versão que viria a ser lançada aqui no Brasil pela universal. Ou seja, não fosse pelos enganos e coincidências do destino, dificilmente A Marca da Maldade seria visto da forma como é hoje: uma autêntica obra-prima.

E analisando a concepção pessoal de Welles para o projeto que, na verdade é uma adaptação de um livro de With Masterson intitulado Badge of Evil, fica difícil imaginá-lo sem todas as características de Welles inseridas em cada frame da película. Lembremo-nos de Cidadão Kane, quando a mera figura de um homem se tornou motivo para uma fascinante desmitificação de personagem; ou de O Estranho, quando a simples chegada de um homem a uma cidade desencadeia uma série de eventos estranhos. Welles fez a mesma coisa com A Marca da Maldade, transformando um batido enredo numa policial numa instigante história sobre ganância e moral.

O próprio Welles acaba por ser o ponto-chave, tanto com sua presença em cena como atrás das câmeras. Como bem disse François Truffaut, “Se ele (Welles) fosse magro, ele seria capaz de interpretar Hitler e nos fazer sentir pena dele”. Truffaut se referia ao antagonista da história, o detetive Quinlan, um sujeito arrogante, egoísta e oportunista, e que acaba por ocupar o centro da película, deixando o protagonista de Charlton Heston em segundo plano. O diretor mergulha fundo na mente deste personagem, privilegiando seu ponto de vista durante as investigações sobre os responsáveis pela explosão, o que traz um toque particularmente sombrio e ambíguo para a narrativa.

E como boa parte do filme (se não ele todo) se passa em meio a cenários noturnos, Welles não perde a oportunidade de elaborar brilhantes sequências visuais que nos fazem querer manter a atenção em cada detalhe do que se passa na tela (mais uma vez, a comentada cena do plano sequência), dando também a oportunidade para que o diretor de fotografia Russel Metty trabalhe em cima dos contraste entre o claro e o escuro e da utilização das sombras para, mais uma vez, explorar a ambiguidade da realidade em que vivem os personagens.

E que personagens! O Quinlan de Welles é um sujeito fascinante, dominador e enigmático, e a atuação de Welles, perfeitamente calibrada até mesmo na rapidez com que profere seus diálogos, transformam Quinlan num dos antagonistas mais fascinantes do gênero noir. Janet Leigh participa de uma espécie de prelúdio para o trágico destino de Marion Crane em Psicose (assista ao filme para entender), e Akim Tamiroff (Por Quem os Sinos Dobram) também possui boa presença em cena como o mafioso Joe Grandi. Apenas Heston é quem enfrenta problemas na pele de Ramon Vargas, já que o ator não consegue convencer como um oficial mexicano, apesar do charme natural que exala.

Encerrando-se com uma sequência tão hipnotizante quanto aquela que o abriu, A Marca da Maldade é uma respeitável obra de suspense que flerta com o cinema noir, indo além da mera construção de uma narrativa que possa fisgar o espectador e construindo um estudo complexo sobre a natureza humana em cima da fascinante persona do antagonista. Genial e empolgante.

A Marca da Maldade (Touch of Evil) — EUA, 1958
Direção: Orson Welles
Roteiro: Orson Welles, Franklin Coen, Paul Monash (baseado na obra de Whit Masterson)
Elenco: Orson Welles, Charlton Heston, Janet Leigh, Joseph Calleia, Akim Tamiroff, Joanna Moore, Ray Collins, Dennis Weaver, Valentin de Vargas, Mort Mills, Victor Millan
Duração: 95 min.

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