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Crítica | A Marca do Demônio

por Leonardo Campos
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Em tempos de crise pesada, narrativas sobre exorcismo surgem como alegoria para nossas ânsias mais profundas. Algumas conseguem a proeza de entregar uma narrativa nobre para um tema tenebroso. Outras esquecem o bom senso em sua caminhada, atitude que permite a falta de destreza na entrega de histórias que não convencem nem um espectador iniciante no mundo dos filmes de terror. É o caso do mexicano A Marca do Demônio, mixagem de possessão demoníaca/exorcismo com elementos da literatura de H.P. Lovecraft, filme dirigido por Diego Cohen, cineasta guiado pelo texto de Ruben Escalante Mendez, realização exibida como parte das produções disponibilizadas pelo Netflix. Não há tabuleiro ouija e brincadeiras com o copo/compasso. O maligno se manifesta pelo contato com o Necronomicon, livro fictício de Lovecraft que ao ser tocado, manuseado e ter algumas passagens evocadas pela leitura de duas personagens, abre precedentes para a entrada de entidades malignas no bojo de uma família que vivia os seus dias numa existência comum, sem grandes picos de adrenalina religiosa.

Na trama, acompanhamos a persistência de uma estrutura demonológica de cunho quinhentista/seiscentista que geralmente acomete mulheres, numa era de novas abordagens para a reflexão de questões voltadas ao tópico sexual da “liberação feminina”. Lá nos anos 1970, no clássico O Exorcista, olhado diacronicamente, sentimos a presença dos ideais de mulher que acabam por vivenciar o tradicional e a postura política engajada, focada na mulher que trabalha e estuda, bem como dita as suas regras e condutas sexuais, sem deixar de exercer os seus papeis com responsabilidade. Era também uma época para observação da Igreja Católica e seu enfretamento diante da necessidade de novas reformas, pois o clã teve de que lidar com o crescimento vertiginoso de igrejas evangélicas, pentecostais e as neopentecostais, espaços mais atraentes por causa dos cultos com “cenas de cura” e outros espetáculos, representações atraentes para as pessoas que desejam se inserir numa vivência religiosa “intensa e verdadeira”.

Já nos desdobramentos de A Marca do Demônio, não há sub-texto que permita discussões do mesmo quilate, pois mesmo que nosso tempo histórico seja uma extensa malha de atrocidades sociais costuradas diariamente, as escolhas narrativas ao longo dos 82 minutos do filme impedem que a reflexão avance. Piorou o magnetismo do espectador, entediado com a quantidade de bobagens expostas num terror que recicla mal as fórmulas mais clássicas deste subgênero do cinema, isto é, os “filmes de exorcismo e possessão demoníaca”. Tudo começa no passado, antes do salto temporal de 30 anos. Um padre realiza um ritual de exorcismo que não sai como o planejado e o possuído, aparentemente morto e abandonado numa estrada que serpenteia montanhas, retorna para a arquidiocese para matar o sacerdote que o deixou. Sabemos que a situação de possessão está conectada com um misterioso livro próximo ao corpo infantil exorcizado violentamente, parte de uma possessão pesadíssima.

O salto se estabelece. Conhecemos então a filóloga Cecilia (Lumi Cavazos), pesquisadora que não resiste ao novo material de trabalho enviado para análise. O tal livro, que mais tarde saberemos ser o Necronomicon, é enviado misteriosamente para a sua instituição. Engraçado como as conveniências da narrativa são forçadas para o desenvolvimento da proposta. Mesmo que seja tão respeitada, dificilmente uma pesquisadora retiraria o livro secular do ambiente profissional para levar e deixar em cima da mesa do escritório domiciliar, de maneira leviana. É com este descuido que as filhas Fernanda (Nicolasa Monasterio) e Camila (Arantza Ruiz) acessam, brincam com o material junto ao namorado de uma delas e tornam-se amaldiçoadas ao citar o nome de Cthulhu, entidade do mundo fantástico de Lovecraft, supostamente anterior ao Deus que conhecemos, criador da humanidade para servidão e escárnio. É com essa premissa que as jovens serão tratadas, pois servirão aos propósitos do demônio que administra os seus corpos.

Uma delas é possuída primeiro. O ápice ocorre no retorno de uma noitada. O que parecia ser apenas álcool demais se revela além do imaginado pela família que se destrói diante da maldição. Os pais não acatam as ideias, uma das garotas procura o Padre Tomás (Eduardo Noriega) e é neste momento que as histórias se cruzam. Ele é o mentor de Karl (Eivaut Rischen), aprendiz que se apresenta como o padre possuído que se dedicará a lutar contra o demônio que atacou a família. Algo como o mal contra o mal. Nada confuso, apenas experimentações que tentam, mas não se estabelecem. Entre idas e vindas, a direção de arte de Alfonso De Lope é bem básica nos adereços para compor os cenários, gerenciados pelo design de produção de Ana Orellano, setor que trafega pelo aspecto urbano de sua história, dividida entre as duas linhas mencionadas. Não há iconografias seculares, numa ambientação bem contemporânea do exorcismo. Interessante é a vida de pecado dos padres, apresentados aqui como seres humanos repletos de falhas, sem a aura de santidade comum aos sacerdotes no cinema e na vida real. Ah, enquanto as meninas são possuídas por Cthulhu, Karl é tomado por Ythogtha, as entidades do universo literário supracitado. O que elas estão fazendo em paralelo num filme de possessão? Não queira saber. Assista e confira. Se quer saber como funciona? Respondo. Mal, muito mal.

Para alguns, o desinteresse pelo filme pode ser apontado como inexperiência com narrativas que quebram expectativas, mas assumo que não foi este o caso. A Marca do Demônio busca fazer reversões e reciclar clichês, mas não trabalha bem com os ingredientes de uma tradição extensa, exaustivamente trabalhado ao longo de mais de quarenta décadas do clássico que estabeleceu a linguagem dos filmes de exorcismo no começo dos anos 1970. Nada contra o design de som de sonoridades macabras, assinado por Graham Plowman, setor eficiente, tal como os efeitos visuais supervisionados por Antonio Gallardo, simplórios, mas o menor dos grandes problemas dramáticos do filme em questão. Os figurinos de Atzin Hernandéz trajam o padre possuído como um “Constantine” meia-boca, se espaço para brilhar dentro da visualidade desta narrativa com beleza em alguns planos gerais, imagens captadas por drone, mas nenhum momento realmente inspirado no que concerne aos meandros da direção de fotografia. Em suma, um irregular filme de exorcismo que poderia ao menos ser diversão culposa para quem busca entretenimento. Mas, A Marca do Demônio sequer consegue esta mínima proeza. Lamentável.

A Marca do Demônio (La Marca Del Demonio) — México, 2020
Direção: Diego Cohen
Roteiro: Ruben Escalante Mendez
Elenco: Lumi Cavazos, Eivaut Rischen, Eduardo Noriega, Nicolasa Monasterio, Arantza Ruiz, Janda Montenegro
Duração: 82 min.

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