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Crítica | À Meia-Luz (1944)

por Luiz Santiago
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George Cukor sempre enfrentou “problemas artísticos” em Hollywood. Um dos mais conhecidos foi o seu afastamento da direção de …E o Vento Levou (1939), entregue a Victor Fleming. Seu reconhecimento, embora a acusação de que era autor de “filmes de mulheres” o tivesse acompanhado por muitos anos, veio com os longas que dirigiu para a MGM. Neste estúdio, Cukor encontrou certa liberdade e sua capacidade criativa foi vista por um público que se encantava com a elegância e a sensibilidade de sua direção. O clima burguês, pomposo, com diálogos equilibrados que não eram nem pop nem poéticos, antecederia, de certo modo, a atmosfera de Luchino Visconti, e é esta atmosfera inserida em opressão psicológica que vemos se arrastar em À Meia-Luz (1944), uma história de casamento por interesse onde a personagem feminina (elemento típico na filmografia do diretor) é explorada e valorizada por sua força e delicadeza.

O roteiro é baseado na peça teatral de Patrick Hamilton, e conta a história de Paula Alquist, sobrinha de uma famosa cantora de ópera assassinada; e Gregory Anton, pianista pretendente e futuro esposo de Paula. Após o casamento, Gregory passa a torturar psicologicamente sua jovem esposa, fazendo-a acreditar que está enlouquecendo. E o enredo vai por um rumo diferente — embora mantenha o suspense — quando o investigador Brian Cameron passa a desconfiar de Gregory.

SPOILERS!

O filme consegue o bom clima dramático com as excelentes atuações dos poucos atores que o protagonizam. Paula Alquist é vivida pela sueca Ingrid Bergman, que provida de grande pesquisa para trazer à tona a personagem, consegue encená-la primorosamente em seus bem definidos três estágios de comportamento: o inicial sofrido e logo depois feliz com a vida de casada; o central e progressivamente histérico; e o final agressivo e, enfim, calmo. Gregory Anton é interpretado por Charles Boyer. O ator dá ao personagem grande força e orgulho, conseguindo também nuances românticas e agressividade perversa em questão de segundos. Brian Cameron recebe fôlego com o excelente Joseph Cotten. O ator mantém a personificação gentil-inabalável mesmo quando deve ser violento (como na cena em que está com o “vestido de Theodora” nas mãos e revela saber os passos do assassino há dez anos). George Cukor tece as relações entre os personagens de forma suave, inserindo um escape, mesmo mínimo, com o humor ácido na “fixação assassina” da Senhora Thwaites, sempre preocupada em saber coisas sobre assassinatos e sobre a vida de seus vizinhos.

O filme é claustrofóbico e a decisão de realizá-lo totalmente em estúdio contribuiu para a sensação de prisão domiciliar, tendo respaldo na direção de arte, que fixou nas paredes e espalhou pelo set toda a sorte de quadros, plantas, papéis, roupas, baús, mesas, cadeiras, tapetes, livros e estantes. Não existem ângulos vazios. Mesmo o cenário “externo”: a praça, as ruas ao redor da casa, a feira na Itália… tudo está cheio de elementos que preenchem a lente da câmera, aumentando a sensação de sufocamento. Idêntica sensação se dá com os figurinos e, nesse sentido, eles também se aproximam da atmosfera viscontiana. As mulheres sempre elegantes (mesmo Nancy, a empregada e Elizabeth, a cozinheira), com longas e brilhosas peças, chapéus vitorianos, sombrinhas e jóias. Tudo é demasiado e está abarrotado de coisas: a mente de Paula com várias ideias sobre sua possível loucura, o sótão com toda a antiga mobília da casa e as centenas de peças da falecida Sra. Alquist; Nancy com seus diversos namorados; o “vestido de Theodora” totalmente composto pelas lendárias jóias do czar; e Gregory com seus diversos planos a fim de arrastar Paula para o hospício.

Quadro a quadro, a montagem objetiva e inteligente consegue harmonizar o enredo e o filme alcança a força leve de uma narrativa bem estruturada. O tempo dos takes é rígido, preciso. Quando necessário mostrar eventos fora da linha central (as saídas noturnas de Gregory e a articulação da investigação de Brian, por exemplo), vemos alternar-se planos paralelos e simultâneos. O espectador é condicionado a esperar o “quadro do sofrimento” e, quando este aparece, espera ver o que ocorre fora dele. O efeito narrativo alcança sua completude quando as pequenas partes soltas começam a se entrelaçar e o aparentemente inofensivo Brian entra em ação e fixa as intenções e os clichês que faltavam.

As oscilações da lamparina (o filme se passa em 1875), os flashes de luz do sótão, a sala de estar e o quarto a cada perturbação de Paula, seu rosto, o salão de concertos da amiga da falecida Sra. Alquist, o hotel em Como, o trem, tudo recebe rigorosa inserção de luz e o efeito plástico obtido, por vezes, sugere que tudo faz parte de um devaneio. A película, no entanto, caminha para um pré-definido desfecho e, talvez por isso, tenha sua força diminuída. Todo o esforço formal rendido aos pés das normas do estúdio: a vitoriosa defesa de Paula, a boa burguesa oprimida pelo mau burguês. Do meio do filme para frente, o que realmente empolga é a interpretação estonteante de Ingrid Bergman, que não se perde em nenhum momento.

À Meia-Luz é um bom filme. Traz um enredo empolgante e expõe questões fortes, bem interpretadas e dirigidas. Mas tem um vácuo que mostra o peso do estúdio na decisão final de coisas que poderiam ir por um caminho mais ousado e garantiriam um desfecho consideravelmente superior.

À Meia-Luz (Gaslight) – EUA, 1944
Direção: George Cukor
Roteiro: John Van Druten, Walter Reisch, John L. Balderston (baseado na peça de Patrick Hamilton).
Elenco: Charles Boyer, Ingrid Bergman, Joseph Cotten, Dame May Whitty, Angela Lansbury, Barbara Everest, Emil Rameau, Edmund Breon, Halliwell Hobbes, Tom Stevenson, Heather Thatcher, Lawrence Grossmith, Jakob Gimpel
Duração: 114 min.

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