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Crítica | A Moeda de Cobre de Dois Sen, de Edogawa Ranpo

A estreia literária de um mestre da ficção detetivesca no Japão.

por Luiz Santiago
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Grande admirador da literatura de Edgar Allan Poe, Hirai Taro criou para si o pseudônimo de Edogawa Ranpo, que foneticamente se parece bastante com o nome do escritor americano. Em sua estreia literária, com o conto A Moeda de Cobre de Dois Sen, publicado na revista Shin Seinen (Nova Juventude), em abril de 1923, o japonês faz uma referência direta ao conto O Escaravelho de Ouro, de onde tira a inspiração para brincar com uma mensagem codificada e o tesouro que ela pode esconder. Em sua caminhada literária, Ranpo foi muitíssimo importante para o desenvolvimento e a disseminação da ficção policial / detetivesca (tantei shōsetsu) no Japão, renomeada, depois da Segunda Guerra Mundial, para algo um pouco mais amplo, chamado de “ficção de raciocínio dedutivo” (suiri shōsetsu), às vezes englobada de maneira mais genérica no termo “literatura de mistério“, exatamente o que a gente faz aqui no Ocidente com “literatura policial“.

Ao lado dos escritores Kido Okamoto e Kuroiwa Shūroku, Ranpo conseguiu fazer com que a ficção detetivesca em seu país passasse de uma literatura mal vista, entendida como “menor”, para um gênero respeitado e muitíssimo requisitado, posteriormente tomando lugar no cinema e, anos depois, na televisão e nos mangás. O estilo de escrita de Ranpo tem um grande papel nisso, porque a despeito de sua admiração por Poe e Conan Doyle, por exemplo, ele não maquiava os cenários, os personagens e os costumes desses personagens em seus textos. A paisagem e o modo de vida japoneses estavam lá, com todas as suas características, e esse tratamento típico para um gênero com regras clássicas já bem estabelecidas no Ocidente fez com que tivéssemos, na “ficção de raciocínio dedutivo” nipônica, modelos de abordagem que são realmente incríveis — e não posso deixar de destacar, claro, os “mistérios de quarto fechado” (locked room mystery) japoneses.

O presente conto é guiado por um narrador anônimo que conversa o tempo inteiro com o leitor, criando um caminho metalinguístico que torna o conto ainda mais chamativo, porque parece uma confissão feita por um amigo nosso. Esse narrador nos conta um “evento do passado”, quando ele e seu amigo Matsumura Takeshi viviam pobremente em um apartamento de um cômodo. Há uma certa ironia dele ao indicar a vagabundagem em que vivia, status comportamental que, mais ironicamente ainda, se liga ao drama do Bandido Cavalheiro (a descrição dos atos e da inteligência dele, mais o apelidinho popular que ganha, me fez lembrar de Arsène Lupin), algo que o narrador repreende como “coisa errada“, embora admita ter sentido inveja do ladrão ao descobrir o roubo de 50.000 ienes em uma companhia elétrica de Shiba, Tóquio.

O conto nos traz três blocos de exposição/desenvolvimento de gênero, começando pelo roubo. O crime é cometido de forma muito bem estudada, com o bandido disfarçando-se de repórter, escondendo-se no prédio e esperando o horário de almoço dos funcionários para roubar o dinheiro do pagamento (aliás, ele não rouba os que já estavam nos envelopes dos trabalhadores, apenas o da mala geral). A segunda parte mostra as andanças da polícia para tentar encontrar o bandido, numa criteriosa investigação que termina, de fato, com a captura do culpado. E a terceira parte, que claramente é aquela que o autor queria chegar e focar sua máxima atenção, se dá no âmbito particular, literalmente na construção e revelação de uma trollagem feita pelo narrador ao seu amigo Takeshi. É uma parte engraçada, mas com um quê de amargura, dada a enorme decepção do pobre Takeshi e a humilhação não apenas pela destruição de sua esperança de riqueza, mas também pela zombaria que o narrador faz da inteligência do amigo.

Ranpo escarnece do método detetivesco fanático, neurótico, sem os pés na realidade. Takeshi estava tão vidrado na possibilidade de descobrir algo — e não era um ânimo vazio: ele tinha muitas provas em mãos, mas não as interpretou objetivamente –, deixando passar possibilidades óbvias que podiam, inclusive, impedir que ele gastasse um dinheiro que não tinha. Particularmente não sou fã do processo de explicação super detalhada do criptograma (exatamente a mesma parte do conto que eu não gostei em O Escaravelho de Ouro), mas diferente da obra de Poe, a de Ranpo logra manter a jovialidade e o mistério até a última linha, com uma pergunta que o narrador propositalmente deixa sem responder e que, dependendo da resposta que ele nos desse, pode levar a situação para um caminho bem diferente. O mistério oculto… dentro de um mistério duplamente investigado e resolvido.

A Moeda de Cobre de Dois Sen (二銭銅貨 / Ni-sen Dōka / The Two-Sen Copper Coin) – Japão, abril de 1923
Autor: Edogawa Ranpo
Publicação original: Shin Seinen (New Youth / Nova Juventude)
20 páginas

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