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Crítica | A Montanha Mágica, de Thomas Mann

por Fernando JG
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Admiro as façanhas dos escritores do século XX, principalmente dos primeiros vinte anos, da chamada “crise do romance”, conjunto de escritores que compõem o seleto grupo dos anos vinte, que colocaram a estrutura romanesca em crise, rompendo com a forma tradicional ao mesmo tempo em que trouxeram um experimentalismo típico da modernidade, e alguns nomes são tão conhecidos que, ao citá-los, já dá para entender o que é essa tal crise do romance: James Joyce, Virginia Woolf, Kafka, Faulkner, e muitos outros. Mas, entre estes,  nenhum me espanta mais do que a figura de Thomas Mann. Acho assombroso perceber que seu nome estava decidindo um debate sobre qual seria o romance mais importante do século, e lá estava A Montanha Mágica (Der Zauberberg, 1924), ovacionada por toda uma tradição de críticos e definida por Ítalo Calvino como a introdução mais completa do século vinte, ou melhor, o romance que define todo um século em suas expressões mais inaugurais. Alguns anos depois do lançamento do romance, Mann é convidado para uma palestra na Princeton University, a propósito da Montanha Mágica, certamente. Naquele momento, apenas 15 anos depois do lançamento, a obra já era tomada como o grande acontecimento na história do romance e estudada em uma das maiores escolas de estudos literários do mundo. Não saberia como introduzir A Montanha Mágica senão assim, levantando a bola de um livro que eu concordo com tudo de positivo que já disseram sobre ele.

Em relação às obras de Thomas Mann, a morte e a doença são motivos recorrentes nas suas narrativas. Nos Buddenbrooks, o problema gástrico da Sifo; na Morte em Veneza, a epidemia da cólera; na Montanha Mágica, a tuberculose; no Doutor Fausto, a sífilis, e em sua última novela, A Enganada (Die Betrogene), o câncer. Portanto, esse enredo orgânico tem importância fundamental, sobretudo na Montanha, que disseca lentamente sobre a doença e a morte ao longo do enredo. Desde cedo em sua família Mann conviveu com a morte, e só alguém que tem uma inclinação tão particular por ela poderia produzir um romance de tamanha magnitude, em que este tema se mostrasse de diversas formas. Na Montanha, o tema da doença é literal e metafórico. Apesar do tema ser o condutor do enredo e o motivo central para que o romance aconteça, já que Castorp adoece e tudo se desenrola a partir disso, a obra trata de um mundo adoecido, que eclode em 1914 com a Grande Guerra, produzindo uma fratura no tempo. Como ele mesmo diz, o seu romance é um documento – belíssimo, diga-se de passagem – do estado de alma e da problemática do espírito europeu no primeiro terço do século vinte. 

Embora publicada em 1924, a gestação da obra data de 1912, quando a mulher de Mann adoece dos pulmões e interna-se em um sanatório para tuberculosos em Davos. Ao passar três semanas lá em cima, Mann faz uma apropriação de toda a atmosfera local e então inicia o seu processo de escrita. O sanatório para enfermos pulmonares na Suíça, em Clavadel, foi a grande inspiração para o escritor alemão, que, por coincidência, foi o local em que Manuel Bandeira fez morada, onde tratou-se de uma tuberculose. Neste período é que o poeta brasileiro escreve o seu melancólico A Cinza das Horas, um livro carregado de penumbrismo e tristeza. Afinal, ser tuberculoso no início do vinte era quase uma sentença de morte, já que não havia cura, e os tratamentos raramente davam algum sucesso. Basta lembrar do primeiro poema do livro, que se chama “Desencanto”, e do primeiro e último verso deste poema: “Faço versos como quem chora”/”Faço versos como quem morre”. É exatamente neste clima que Thomas Mann nos insere neste mundo particular que é a sua montanha. É tudo meio mórbido e a primeira vez em que Castorp ouve a tosse de um tuberculoso, ele a descreve com tanta precisão que é como se a pessoa estivesse sido tomada em seu interior por lodo e decomposição. Essa é uma das descrições mais perturbadoras da narração.

Esta é a obra de sua vida, apesar de muito se falar do monumental Doutor Fausto e do ganhador do Nobel, seu livro de juventude, Os Buddenbrooks: Decadência de Uma Família. Para quem leu a dramática e trágica novela A Morte em Veneza, o romance é o contraponto irônico-humorístico dela (esse humorístico é com muitas aspas, não se engane). Todos esses anos entre o início da escrita e a publicação deve-se à eclosão da guerra, que interrompeu o processo. Toda a experiência de Mann neste período enriqueceu sua percepção sobre a sua própria obra, e é então que ele retorna a escrevê-la, finalizando o livro.

Tenho uma particular dificuldade em definir o enredo da Montanha, mas em resumo trata-se da narração da história de Hans Castorp e dos notáveis acontecimentos que ocorrem ao redor dele. No prólogo do livro, chamado de Propósito, o narrador diz que pretende narrar a história de Castorp, não por ele, mas pela história em si, que é de altíssimo grau. Castorp é um engenheiro burguesote, que lava as mãos em água perfumada depois de todas as refeições, de família abastada, que decide ir visitar o primo adoecido, Joachim, durante suas férias. Joachim está em tratamento no sanatório para tuberculosos Berghof, em Davos, e é para lá que Hans se encaminha durante três semanas. Chegando no luxuoso hospital que abriga a elite europeia, Hans trava contato com diversos personagens, conhece tipos, apaixona-se, aventura-se, adoece, forma-se por meio do contato com as ideias que pairavam na Europa no pré-guerra, angustia-se, presencia a morte, perde colegas, vê o seu primo adoecer, entre outras epopeias. Com tantas experiências, fica claro que Hans Castorp não passa apenas três semanas, como pretendia inicialmente. Nesta montanha encantada, ele permanece por sete anos, pois, quando dá entrada no sanatório, logo descobre estar doente também, e precisa ficar em acompanhamento. A esta altura, entende-se o porquê de se intitular de mágica a montanha. 

Este é um romance sobre o tempo, um zeitroman. Ou melhor, o grande romance sobre o tempo na história da literatura é a Montanha Mágica (Der Zauberberg). Não importa se o Ulisses conta, em mil páginas, as 14 horas do dia de Leopold Bloom. Der Zauberberg fala do tempo histórico e do tempo subjetivo. Ele se passa em um período, que é o pré-guerra, e também tenta captar as instâncias mais subjetivas do tempo dentro do sanatório. Apenas o primeiro dia de Castorp é contado em cerca de 180 páginas, e o enredo tem o seu tempo próprio, que é mais psicológico do que cronológico. Na Montanha, a temporalidade é diluída e o ritmo narrativo tem essa monotonia, refletindo a própria montanha-sanatório, que é monótona e parada. No sanatório o tempo não passa. Não tem nada para fazer além de cumprir as cinco refeições diárias, tomar uma hora de descanso a cada refeição, medir a temperatura e voltar a estar em repouso na famosa posição horizontal. A estrutura do enredo de Mann faz a mimese desse marasmo de dentro do sanatório. O tempo sofre uma distorção, como se fosse uma mágica. É um lugar mágico, quase como um conto de fadas.

Muito apesar do romance joyceano ser considerado o “triunfo da forma”, para mim, não há nada como a obra de Mann no quesito forma e tema, unindo-os em um todo estilisticamente impecável e absoluto. A forma reflete o tema, e o tema reflete a forma. Um exemplo disso é o capítulo Neve: Castorp se perde no meio de uma tempestade, e ingenuamente achamos que ele passou horas tentando escapar da morte, pois isso é contado numa extensão narrativa invejável. Ao fim, descobrimos, junto de Castorp, que olha o relógio, que mal e mal se passou uma hora desde que ele se perdeu. Esta é a experiência subjetiva do tempo psicológico. Hans Castorp entra no sanatório em 1907 e sai apenas em 1914, e é como se ele tivesse dormido todo esse tempo e acordado durante a guerra. 

Este é um romance que compõe a tradição do bildungsroman, do chamado romance de formação, e o próprio Mann intitula sua obra como sucessora dos Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, do Goethe. Apesar do romance de formação colocar o personagem em uma viagem real, externa, passando por aventuras notáveis, conhecendo tipos de pessoas e obtendo aprendizados, a obra de Mann coloca Hans Castorp numa viagem interna, em que todas as suas aventuras são subjetivas. Estilisticamente, o enredo da Montanha Mágica não constitui apenas a crise do romance como característica dos anos vinte, mas pode ser considerado um romance que, ao se filiar à tradição do bildungsroman, entrega à literatura uma crise da formação no período da primeira guerra mundial, ou seja, uma crise da formação do sujeito, como se a guerra tivesse destruído o ideal de formação. 

É neste livro que o leitor irá encontrar todas as ideias que percorriam a Europa no pré-guerra, como as ideias do progresso, os embates entre as noções de razão e metafísica, as questões políticas e diplomáticas. O sanatório aparece como um campo de batalha para os antagonismos europeus que pairavam a atmosfera no pré 1914. Os principais personagens deste embate são Settembrini e Naphta, o italiano liberal, que representa as luzes e o judeu comunista. Os encontros de Settembrini e Naphta colocam em jogo todos os temas intelectuais, políticos, sociais, econômicos, estéticos, artísticos, religiosos e históricos que eclodiram no século XX. Além deles, estão presentes protagonistas russos, mexicanos, alemães, orientais, entre outros. É um grande experimento o que o Thomas Mann faz no enredo do romance. Apesar destes temas, o livro discutirá a vida e a morte; o amor e o sintoma de uma maneira apaixonante, com encontros viscerais e diálogos excepcionais. 

Existem alguns subcapítulos importantes dentro dos sete capítulos que compõem a obra. O Neve é o mais importante deles, e tendo a acreditar que, dentro da tradição literária mundial, este subcapítulo é uma das grandes composições já feitas, com uma densidade dramática, emocional, psicológica, filosófica e estética inacreditáveis. A propósito, o Neve é o momento em que Hans Castorp se perde no meio de uma tempestade de neve que surge repentinamente enquanto ele está esquiando em um ponto elevado de uma montanha próxima ao hospital. Toda a trajetória de Castorp na neve é narrada em em uma mescla de terceira e primeira pessoa, conferindo ao narrador um papel fundamental. Aliás, um ponto interessante é o narrador. Este sim é um personagem divertidíssimo, criativo e elegante, adquirindo um papel central na narrativa. A escrita refinada e erudita de Thomas Mann é o que dá o toque de majestade à sua obra, que, por sua vez, adquire tons de obra-prima. O descritivismo na Montanha Mágica é extremamente importante, pois oferece, muitas das vezes, a perspectiva de visão do personagem principal, o Hans Castorp, e é a partir desta escrita que capta os detalhes que a obra vai se construindo. 

Ler Thomas Mann é uma experiência. Gostando ou não do livro, todos temos de reconhecer que, apesar da leitura não ser fácil, ela é, sim, marcante, e por vezes, sublime. Ao terminar a escalada da montanha, o autor permite um sentimento de contemplação meditativa, como se estivéssemos no topo do mais alto monte e de lá observássemos o mundo inteiro. A Montanha Mágica te convida a entrar em um universo distinto, em que te fará presenciar o amor e a morte com igual intensidade. No fim, esse magnum opus da literatura mundial não produz um fim em si mesmo, mas universaliza, com sensibilidade e rigor estético, os grandes sentimentos, e os mais nobres, que povoam e dão brilho à alma da espécie humana, colocando-se, com isso, numa posição de ser o grande romance em toda a história da literatura.

A Montanha Mágica (Der Zauberberg, Alemanha, 1924)
Autor: Thomas Mann
Editora: Companhia das Letras
Tradução: Herbert Caro
Revisão e posfácio: Paulo Soethe
Páginas: 853.

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