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Crítica | A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstói

Uma leitura que nos faz morrer... em vida.

por Luiz Santiago
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A Morte de Ivan Ilitch é um livro da maturidade de Lev Tolstói, considerado por muitos críticos literários e estudiosos do gênero, uma “novela perfeita“. Sobre a obra, há um ditado literário muitíssimo curioso, que diz que algumas pessoas morrem duas vezes na vida, uma delas, quando terminam de ler este livro. E devo dizer que isto não é um exagero. Em menos de 100 páginas, Tolstói ergue e destroça a vida e a alma de um personagem patético, socialmente notável, mas humanamente insosso e absurdamente comum, calcado em aparências, futilidades e imposição de máscaras sociais. Um homem que passou as quatro décadas e meia de sua vida procurando mostrar para os outros que tinha uma existência “decente, leve e agradável“, bovinamente obediente àquilo que exigia sua classe e o seu ciclo de pessoas.

O narrador onisciente do livro é o “olhar divino” que investiga e anuncia tudo o que descobriu sobre o passado e o presente desse Juiz de Instrução que desperdiçou a vida dando máximo valor à burocracia de seu trabalho, à escalada profissional e aos contatos ou facilidades materiais que seu emprego trazia. Filho de burocrata, Ivan segue o mesmo caminho do pai, exibindo uma plaquinha de bom filho e de homem de sucesso, resumindo-se apenas a esses papéis sociais bem representados. Sua passagem pela Terra concentra-se em audiências, jogos de cartas, e ascensão social e profissional. Olhando superficialmente, temos uma exposição crua e dura de uma vida comum. Mas olhando atentamente, percebemos o Universo-armadilha aqui contido. O autor não está questionando apenas a existência de Ivan, fazendo o leitor acompanhar os pensamentos e arrependidos do moribundo, que conclui o quanto ele “viveu a vida de maneira errada“. Há algo a mais.

O que escapa a muita gente, é o fato de que costurar máscaras sociais e passar os dias mergulhado em burocracia é basicamente a vida de todas as pessoas, portanto, o tormento existencial, filosófico e talvez espiritual pelo qual o protagonista passa, não é exclusivo dele. É evidente que a vida de conveniências de Ivan Ilitch, sua ânsia por manter as aparências e a sua hipocrisia são alvos específicos nos quais o autor mira para atingir a um objetivo dramático. No entanto, o que se discute aí são problemas e ações comuns a todos nós. São coisas essencialmente humanas. E é nesse ponto que o livro mostra sua verdadeira grandeza. O convite que nos é feito para refletir sobre a vida e a morte; sobre o nosso impacto na Terra; sobre o que fizemos e o que vamos deixar de marca nesse mundo, não é, como muitos acreditam, um convite indireto. Isso porque o insípido Ivan Ilitch não é apenas um personagem que viveu mal, se arrependeu tarde, e apenas nos últimos minutos de vida conseguiu ver a luz da beleza e da esperança da vida. Ivan Ilitch é cada um de nós… amanhã.

Embora não saiba qual é a verdadeira doença da qual o protagonista sofre, o narrador tem acesso ao máximo de detalhes sobre suas dores, pensamentos e alucinações. E não é só do personagem central que descobrimos os segredos. Também nos chegam pensamentos, diálogos e desejos de sua família, seus amigos e seus colegas de trabalho, todos eles, sem saber, trilhando o caminho de Ivan Ilitch, mas sem uma doença mortal atormentando-os no momento. O autor ironiza a ideia de como a morte se ressente da vida (ou seria o contrário?). No início, os personagens sequer passam muito tempo pranteando a partida de Ivan. A maioria está preocupada com as vantagens que essa morte pode lhes trazer. Nas últimas semanas de vida, a relação de Ivan com o mujique Guerássim mostra um outro lado dessa relação. O moribundo tem um misto de inveja e admiração pela juventude, força e saúde do jovem empregado, mas esses sentimentos não são manchados pelo ressentimento que Ivan guardava da esposa, da filha e até mesmo dos médicos. Guerássim é um jovem que não mente sobre o que vê. Que lida abertamente com o fato de que está cuidando de um homem no leito de morte. Que se compadece daquele que sofre, mas não o faz por protocolo. Ele é o farol de honestidade que Ivan sentia falta, e com o qual é presenteado em suas últimas semanas de vida.

A prosa rica de Tolstói nos faz chegar ao cerne da existência humana, ao limiar entre o mundo material e o mundo espiritual. E este momento de catarse é um dos mais poderosos e impactantes do livro. Ele me fez pensar naquelas “melhoras da morte” que alguns doentes têm, em seus dias ou horas finais de vida. E junto com essa coisa que o autor chama de “iluminação“, vem o conforto final. A paz, enfim. O medo da morte, que tanto atormentou o protagonista, simplesmente desaparece. E depois de tanto arrependimento, de entender aquilo que não fez em vida, de lembrar-se dos deliciosos momentos da infância e de como sua vida foi “piorando em essência“, enquanto “melhorava em status“, Ivan Ilitch atenta para um significado derradeiro. Um segredo que lhe fora negado até então, mas que parece servir de combustível para o embarque à outra dimensão. É quando entende, seja lá o que significa a existência humana, ele deixa de existir.

Das inúmeras obras que refletem sobre a morte, sobre o quão fugaz é a vida e sobre aquilo que possivelmente dá sentido à nossa existência, esta novela de Tolstói me parece ser a mais completa. Aquela que abrange o maior número de símbolos e traz o maior número de debates em pouco tempo, e com o devido impacto que essas reflexões merecem. A Morte de Ivan Ilitch é um misto de lembrete irônico para aquilo que todos nós sabemos (que vamos morrer), a reafirmação de uma crítica que a maioria de nós fazemos (que não vivemos a nossa vida da maneira mais perfeita possível) e a exposição de algumas possibilidades que podem trazer o mínimo de conforto e esperança. A linha que separa o sofrimento do personagem, do nosso real sofrimento, desaparece, transformando a morte de Ivan Ilitch em um alerta que não poupa ninguém, deixando os leitores num misto de neurose, preocupação, votos de uma vida melhor e um novo olhar para o mundo. A nossa tarefa, ao fim da leitura, é juntar as peças espalhadas da nossa alma, ressuscitar, e seguir vivendo, mesmo destruídos por esse rolo compressor existencial.

A Morte de Ivan Ilitch (Смерть Ивана Ильича / Smert’ Ivana Ilyicha) — Rússia, 1886
Autor: Lev Tolstói
Edição lista para esta crítica: Editora 34 (Coleção Leste), 2006
Tradução: Boris Schnaiderman
98 páginas

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