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Crítica | A Morte do Adivinho, de Rudolph Fisher

O primeiro mistério com detetive e protagonistas negros.

por Luiz Santiago
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O Renascimento do Harlem (Harlem Renaissance) foi um movimento cultural protagonizado por afro-americanos no famoso bairro de Manhattan, em Nova York. O período dessa explosão artística, marcada por um forte orgulho racial e ligação do ativismo com a produção artística na música, literatura, artes visuais, dança, etc., começou a se tornar relevante por volta de 1918 e durou, nesse formato mais intenso, até meados dos anos 1930. Na época chamado de New Black Movement, este período de manifestações intelectuais e sociais em torno de artistas negros, produzindo sobre e para pessoas negras, plantaria sementes que seriam colhidas na onda de busca por direitos civis, três décadas depois. Dentre os literatos que integraram o movimento, havia Rudolph Fisher, um médico e escritor que morreu aos 37 anos, mas deixou como legado uma variedade de contos e dois romances, a saber, The Walls of Jericho (1928) e o interessantíssimo mistério A Morte do Adivinho, publicado em 1932.

O livro tem a impressionante marca de ser “o primeiro romance policial com detetive e protagonistas negros“, o que de cara já traz uma grande relevância histórica para a obra, infelizmente esquecida por bastante tempo, até ser redescoberta em tempos de mídias digitais. O autor começa pegando o leitor pela mão e fazendo-o andar por algumas ruas do bairro. Sua prosa é leve, instigante, e a descrição do tempo frio, das cores, dos sons, da arquitetura local e das pessoas que por ali passam nos dão uma boa noção de que tipo de história será narrada. E essa ambientação é praticamente uma das únicas que acontecem na rua, porque a maior parte dos eventos do livro se passam em locais fechados. As futuras descrições serão sobre cômodos misteriosos, um deles, o apartamento de N’Gana Frimbo, feiticeiro africano morto em sua sala de consultas, no meio de um atendimento a um cliente chamado Jinx Jenkins.

Quem matou Frimbo, e por quê? Estas são as perguntas que guiarão a investigação do detetive Perry Dart, descrito como “um dos dez detetives da polícia negra do Harlem“, que terá ajuda do Dr. Archer — médico que mora do outro lado da rua de Frimbo, e que é chamado para atender a vítima por volta das 23h de um sábado, pouco depois de o crime acontecer –; e por um detetive amador chamado Bubber Brown, grande amigo de Jinx e inicialmente integrante da lista de suspeitos. Aqui, o leitor está diante de uma narrativa pouco comum para mistérios dos anos 1930, pela carga de humor ácido, de ironias e cinismo que o autor utiliza (hoje, muito comum nos cozy mysteries), especialmente nos diálogos envolvendo Bubber e Jinx, que estão o tempo inteiro brigando. Eles possuem personalidades bem diferentes, mas sua amizade será uma das coisas mais bonitas que veremos no desenvolvimento da obra; uma relação que permitirá, inclusive, que o leitor conheça um pouco mais da personalidade e do pensamento de cada um deles.

A construção do mistério é profundamente marcada pelas gírias, moda, música, superstições e cotidiano da população negra do Harlem, e o leitor não consegue ficar indiferente ao acompanhar tantos personagens negros (especialmente os protagonistas) numa obra de 1932, algo que definitivamente não é comum na literatura da época. Esse caráter étnico se junta a uma atmosfera mística, mágica, que emana de um peculiar adivinho africano (que afirma ser do povo Buwongo). Ele estudou filosofia, tem diploma de Harvard, mas trabalha dando conselhos, prevendo o futuro e respondendo questões misteriosas que lhes são levadas pelos clientes. Ajudado por um criado Buwongo, um silencioso homem vesgo (N’Ogo), Frimbo é admirado e temido no Harlem, de modo que sua morte causa uma forte comoção em todos os que estão direta ou indiretamente envolvidos. No contexto da investigação e das reviravoltas, misturam-se diferentes sentimentos em relação ao tal Frimbo, principalmente na reta final do livro.

A Morte do Adivinho não é um mistério comum. Ele trará uma grande quantidade de camadas, cada uma delas ajustada a um personagem e à sua forma de ver a situação. Quando o Dr. Archer ganha destaque, Fisher usa o seu conhecimento como médico para fundamentar muitíssimo bem os detalhes ligados à morte e às muitas teorias sobre o corpo e as provas colhidas. Quando foca em Bubber, o tom se torna mais vivo, cômico, e segue um olhar amador e arguto sobre o crime e o método do assassino. Já pelo olhar do detetive Dart ou de um outro personagem que aparece ainda na noite em que o corpo do adivinho é levado para o necrotério, o drama muda de figura, fica mais profissional, objetivo, considera e acrescenta coisas que não tínhamos em cena até o momento.

A intrincada teia de eventos é bem resolvida no desfecho, quando o autor reúne todos os personagens para uma “consulta mágica especial” e não só entrega uma grande surpresa, como elenca uma última reviravolta. É um ponto do livro que carece de alguns detalhes para ações derradeiras, mas não a ponto de estragar a nossa experiência. Em outro momento da obra, quando Frimbo narra sua história, os rituais de seu povo e sua jornada de vida, em senti falta de uma ligação direta dessa fala com os eventos da trama. Embora haja uma relação de contexto dando suporte à narração, o livro poderia passar sem ela, já que ali não vemos informações necessárias para a compreensão de muitas coisas na história. Repleto de momentos hilários, tensos e um pouco assustadores, A Morte do Adivinho é um dos suspenses clássicos mais interessantes que eu já li, uma brincadeira mística envolvendo morte, visões do futuro e a necessidade de se fazer justiça contra um assassino num bairro habitado por maioria negra, em plena Lei Seca.

A Morte do Adivinho (The Conjure-Man Dies: A Harlem Mystery / A Mystery Tale of Dark Harlem) — Estados Unidos, 1932
Autor: Rudolph Fisher
No Brasil: Harper Collins, 2023
Tradução: João Souza
Design de capa: Giovanna Cianelli
Texto de apoio (O médico e autor negro que conhecia seu Harlem e sua raça): Stefano Volp
304 páginas

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