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Crítica | A Mulher das Dunas, de Kobo Abe

Areia por todos os lados.

por Ritter Fan
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Há alguns livros que incomodam e, ao incomodar, conversam profundamente com o leitor, querendo ele ou não. A Mulher das Dunas, sexto romance do escritor japonês Kobo Abe e primeiro (de apenas dois) de sua bibliografia a ser adaptado para o audiovisual, é inegavelmente uma dessas criações, talvez no mesmo nível dos trabalhos mais famosos de Franz Kafka no quesito “incômodo do leitor”, até porque, no final das contas, o protagonista, o entomólogo amador Jumpei Niki, ao procurar insetos em uma região arenosa no litoral do Japão, acaba em uma literal situação kafkiana, preso em um buraco em meio às dunas, na casa de uma mulher do vilarejo pesqueiro que decide visitar.

Niki é um professor escolar e tem nos insetos seu hobby, sua fuga da rotina, mas também sua chance de ganhar imortalidade e distinção entre seus pares se descobrir uma nova espécie, já  que seu nome poderá para sempre ficar ligado à ela. Essa sua ambição o leva à região arenosa em questão em que, segundo ele, poucos entomólogos se aventuram justamente por atrair poucos insetos. Ao perceber que ele precisará passar a noite por ali, ele pede guarida aos habitantes do vilarejo que o levam até a casa de um mulher no fundo de um buraco cercado por dunas. A escada de cordas que lhe permite acesso é logo retirada e ele instantaneamente torna-se um prisioneiro, passando, depois de um período de aclimatação forçada, a ser obrigado a retornar a uma rotina, agora a de retirar areia juntamente com a mulher para manter o vilarejo estável.

Kobo Abe, assim como soterra seu protagonista, trata de soterrar também o leitor, sem nenhum tipo de clemência. Seu texto é circular, constante, sempre lidando com o monótono e escaldante trabalho novo de Jumpei Niki ou com as formas como o personagem planeja escapar de lá. Como tudo nesse pequeno universo absurdista que o autor traz à vida, tudo se move e tudo o que se move impede os movimentos das pessoas. Se andar pelas dunas já é uma tarefa hercúlea, subir o buraco sem ajuda externa é impossível, algo que é ampliado pelo fato de que o lugar é muito facilmente vigiando pelos locais a partir de posições mais altas. Niki está emparedado pela areia e pelo sol e calor constantes e por um trabalho que só gera mais trabalho, sem nenhum tipo de sensação de realização.

É nessa perpetuidade de movimentos sem perspectivas que Kobo Abe explora a relação do Homem com o Trabalho. O trabalho impulsiona a sociedade, dizem, mas, na visão micro, na lupa colocada por sobre a cabeça de um único individuo em sua labuta diária, que é justamente o que Abe faz, de certa forma espelhando a lupa que Niki usa para observar seus insetos, a rotina transforma-se em um peso e esse peso, com o tempo, transmuta-se na única razão de ser. O buraco cavado constantemente que se enche de mais areia na mesma proporção é o lixo retirado das ruas por garis, é o parafuso apertado por técnicos em fábricas, é a petição escrita por advogados em escritórios. Não que não se possa ter prazer com o trabalho, vejam bem, mas o que o romance aborda é o ponto em que o prazer ficou para trás, tornando-se mero automatismo e a mera perseguição de… o que mesmo? Afinal, Faixa de Möbius que pode ser o trabalho – dê tempo ao tempo, olhe para trás e diga se esse “pode” não é apenas uma forma que eu encontrei de suavizar a questão – impede que se veja o começo e o fim. Apenas o meio importa, o meio imediato, aquele momento em que clicamos no botão que temos que clicar para fazer a máquina funcionar de acordo.

Há um elemento importante de aceitação também. Aceitação de determinada situação. Aceitação de que não há real saída. Aceitação de que nada realmente mudará e que aquilo que se faz é aquilo que existe. O mundo de Jumpei Niki é seu trabalho arenoso, infinito, em que o resultado não é mais do que se manter o status quo. Não é esse o mundo em que vivemos se olharmos bem para perto de nós mesmos? Quanto tempo dedicamos ao trabalho? Quanto tempo dedicamos ao lazer? Temos alguma real escolha? Essas sãs as perguntas que Kobo Abe parece fazer ao longo de sua narrativa claustrofóbica que vai esmagando o leitor de pouco em pouco, fazendo-nos cair em sua armadilha sem nenhuma chance de escapar. A areia torna-se palpável em determinada altura do romance e é um enorme mérito do autor sua capacidade de metaforicamente transportar o leitor para o buraco que descreve e, no processo, nos fazer perceber o buraco em que vivemos. Sim, é incômodo. Mas é também libertador.

A Mulher das Dunas (砂の女 / Suna no Onna – Japão, 1962)
Autoria: Kobo Abe
Editora original: Shinchosha
Data original de publicação: 08 de junho de 1962
Editora no Brasil: Editora Estação Liberdade
Data de publicação no Brasil: 10 de dezembro de 2021
Tradução: Fernando Garcia
Páginas: 288

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