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Crítica | A Noite (1961)

por Marcelo Sobrinho
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 “O que eu achava piora era a sensação de que a cada dia os hábitos aprisionavam nossa vida de uma determinada forma e que nossos sentimentos já não eram livres. Estavam subordinados ao curso monótono e impassível do tempo”.

Felicidade Conjugal, de Liev Tolstói

O tema do matrimônio e suas intempéries já foi retratado diversas vezes pelo cinema. As diversas fases de um casamento e todas as questões que elas suscitam já foram examinadas por cineastas da melhor estirpe. Obras como Domicílio Conjugal, de François Truffaut e Cenas de Um Casamento, de Ingmar Bergman, são possivelmente dois dos melhores exemplos. Filme de importância equivalente sobre o mesmo tema é A Noite, segundo capítulo da aclamada Trilogia da Incomunicabilidade, de Michelangelo Antonioni. O italiano segue debruçando-se sobre os limites da comunicação humana e, dessa vez, ele constrói um filme menos nebuloso em sua proposta do que o primeiro da trilogia – A Aventura, mas não menos instigante e bem realizado. Antonioni está ainda mais afinado com o tema e mais habilidoso em trabalhá-lo.

O longa-metragem acompanha o declínio do casamento do escritor Giovanni Pontano (Marcello Mastroianni) e sua esposa Lídia (Jeanne Moreau) durante um único dia, que atinge seu clímax na noite de festa que expõe todas as fraturas, antes encobertas, do relacionamento. Em A Noite, Antonioni combina o virtuosismo com a suavidade. Como um autêntico esteta, o diretor italiano alcança planos da mais irretocável beleza, utilizando quase tudo o que a gramática do novo cinema lhe oferecia. Na França, nascia a Nouvelle Vague. Na Itália, avançava o Neorrealismo. No filme do italiano, já se pode encontrar praticamente todos os recursos que o movimento francês empreenderia – a câmera livre, tortuosa, alternando entre planos frontais, de nuca e perfil e angulando ora em plongée ora em contra-plongée. Acrescenta-se uma decupagem serena, sem cortes secos nem saltos excessivos. Tudo em A Noite está a serviço de uma história cheias de nuances, com sabor psicanalítico intuitivo e repleta de confidências a serem lidas pelo público.

Há enquadramentos verdadeiramente notáveis, a exemplo daquele que registra a chegada de Giovanni no momento em que Lídia dialoga com Valentina (Monica Vitti) e lhe faz uma indecorosa confissão. O belíssimo plano os coloca em perspectiva, com o personagem de Mastroianni ao fundo, ainda alheio à angústia maior de sua esposa, segredada entre mulheres. O último plano em que a personagem de Monica Vitti aparece é também de uma beleza incalculável, construído pela fotografia em preto e branco e pelo extraordinário trabalho de iluminação da direção de arte. A Noite, para mim, é o apogeu técnico do cinema de Michelangelo Antonioni. Há expressividade e intenção em  cada plano, especialmente naqueles em que as palavras são suprimidas em favor da linguagem visual. O choro silente de Lídia no começo da projeção não deve ser perdido, assim como sua conversa emudecida com Roberto dentro de um carro na noite da famigerada festa. Todos esses momentos são fontes ricas de significado.

A incomunicação do casal, que passa boa parte da noite separado um do outro, é o motivo principal do filme de Michelangelo Antonioni. Mas há um diálogo interessante entre Giovanni e Valentina que traduz bem o que é A Noite. Ela lhe diz: “toda vez que tentei me comunicar com alguém, o amor foi embora”. É necessário notar que o filme conduz o tema da incomunicabilidade como problema a ser pensado (não necessariamente resolvido), mas não o transforma em lamento. Antonioni revela que o amor pode ter sustentáculo nos limites da compreensão do outro, pois amar exige uma dose de aposta e, portanto, de incerteza. O beijo final não sela o amor como final feliz e repleto de garantias, mas como sobrevivente de crises que desgastam o convívio, exigem afastamento, fazem nascer dúvidas e hesitações e desaguam em turbulentas reaproximações. E nesse caminho, reabrem-se as mais dolorosas feridas, libertam-se as antigas mágoas e revivem-se as piores inseguranças.

O amor surge como uma afecção humana (palavra com a mesma raiz etimológica de “afeto”) na medida em que provoca necessariamente o sofrimento em seu curso. Antonioni faz incidir a ideia de affectio especialmente sobre as mulheres de seu filme. A doença do amor é mostrada logo no começo, na emblemática cena em que em Giovanni é atacado por uma paciente do hospital onde está o amigo Tommaso. A mulher é contida e punida fisicamente pelas enfermeiras logo a seguir. Nesta cena, a noção de conflito provocado pelo amor é realçada delicadamente pelo contraste entre o vestido negro da personagem e a parede branca ao fundo, colocando-a como ponto central do Eros – amor enquanto desejo e devoção ao outro. Ao final, Valentina diz ao casal Giovanni e Lídia a sua famosa fala como uma espécie de condenação imanente ao amor entre homem e mulher: “Vocês acabaram comigo esta noite”.

É interessante que a noite seja a metáfora desse processo, como um ofuscamento que inexoravelmente terminará no alvorecer de um amor reconstruído, mas apenas projetado, arredio a certezas e constâncias. A carta que Lídia lê ao final, escrita por Giovanni anos antes, contém uma síntese do amor que redescobrem no ardente beijo: “Sentir pela primeira vez que você me pertencia não só naquele momento e que a noite era eterna ao seu lado.”. O russo Andrei Tarkovski, ao analisar A Noite, dizia que aquele era o beijo de duas pessoas se afogando. A carta de Giovanni não nega. Mas acrescenta que esse amor resgatado só poderá ser vivido nessa asfixia. Na eternidade da noite em que um seguirá se afogando no amor do outro.

A Noite (La Notte) — Itália/ França, 1961
Direção:
 Michelangelo Antonioni
Roteiro: Michelangelo Antonioni, Ennio Flaiano, Tonino Guerra
Elenco: Jeanne Moreau, Marcello Mastroianni, Monica Vitti, Bernhard Wicki, Rosy Mazzacurati, Maria Pia Luzi, Guido A. Marsan, Vittorio Bertolini, Vincenzo Corbella
Duração: 122 min.

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