Home FilmesCríticas Crítica | A Nuvem (2021)

Crítica | A Nuvem (2021)

por Leonardo Campos
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Gafanhotos são visualmente assustadores, mas não fazem nenhum mal direto aos seres humanos. Ao menos até agora, com o lançamento do horror ecológico A Nuvem, disponibilizado pela Netflix. Toda criatura da natureza possui a sua função biológica, por isso, baratas, aranhas e gafanhotos, por mais medonhos que sejam em seus aspectos visuais, ocupam lugar dentro dos mecanismos das cadeias que engendram a vida em nosso planeta. No caso do horror ecológico em questão, os gafanhotos representam a ameaça para os personagens que terão de lidar com a fúria destes insetos historicamente associados a voracidade, destruição, desordem e desequilíbrio, bichos biblicamente mencionados como pragas responsáveis por calamidades expressivas. Na vida real, no entanto, ao menos para os mexicanos, eles são alimentos indicados, haja vista a fonte de proteína, minerais e vitaminas disponíveis para que consome. Para os chineses e tailandeses, estes insetos integram a lista de alimentos que podem ser parte da lista na feira cotidiana. No caso das figuras ficcionais do filme em questão, tais criaturas funcionam como uma rentável fonte de manutenção da economia familiar, ponto de partida inicialmente favorável que muda de cenário ao passo que as situações evoluem para um abismo de medo e horror constantes, num caminho que pode parecer sem volta para todos os envolvidos.

Na trama escrita por Jerome Genevray e Franck Victor, Virginie (Suliane Brahim) é uma mãe que cuida sozinha dos filhos Gaston (Raphael Romand) e Laura (Marie Narbonne). Ela precisa lidar com questões econômicas tensas, dentre outros conflitos envolvendo, em especial, a rebeldia e insatisfação constante da filha mais velha. Crise com os vizinhos e estresse ao ter que pagar as principais despesas estão na lista dos problemas que encabeçam a sua listagem cotidiana de desafios. Para conseguir se manter, ela atua numa fazenda e cria gafanhotos para a produção de farinha, além de comercializá-los aos interessados em alimentação com boa dose de proteína. Os problemas começam depois que um acidente doméstico envolvendo um corte considerável em seu braço fará os insetos apresentarem um gosto peculiar por sangue. Há, no entanto, ao longo do desenvolvimento da narrativa dirigida por Just Philippot, elementos mais monstruosos que os insetos de pernas posteriores longas e fortes, próprias para os seus amplos saltos.

Nós, os seres humanos, figuras dotadas de muita ganância, motivação que transforma a busca pela sobrevivência dos personagens numa alegoria para a nossa relação com o mundo que habitamos, somos talvez mais perigosos que os múltiplos insetos em volumes assustadores. Usufruímos e muito abaixo do esperado, conservamos. E com isso, a mãe natureza vem nos fazer a sua cobrança num aterrorizante acerto de contas. Com desenvolvimento que traz situações que percebi, fazem parte de um efeito comparativo ao proposto por Clive Baker em Hellraiser, os bichos ficam cada vez mais ariscos e precisam de sangue. Tudo começa com pequenas doses e num espiral de intensidade crescente, passa a se tornar uma obrigação diária na dinâmica da procriação, afinal, quanto mais os insetos se reproduzem, satisfeitos com a fonte de alimento fornecida pela dona, maior é o fluxo de caixa.

E, com isso, é possível que não haja escapatória para uma cabra de estimação, tampouco o cachorrinho da família. Bobear, será que Virginie descambará para os sacrifícios humanos, tamanho o retorno do investimento? Ao leitor, não entrego nada mais. É preciso ver para crer. Em seus 100 minutos, mais longo que o necessário para o estabelecimento e resolução dos conflitos dramáticos, a equipe de realizadores desenvolve uma narrativa dentro dos esquemas tradicionais do subgênero horror ecológico, mas diferente da maioria dos filmes deste segmento, há foco na dinâmica psicológica dos personagens e nas alegorias com o mal estar contemporâneo acerca da relação entre seres humanos, efeitos climáticos e outras celeumas da natureza que, em alguns casos, revolta-se contra as nossas ações destrutivas. Os gafanhotos, insetos que em 2020, sobrepuseram-se ao cenário da covid-19 para ampliar as nossas preocupações sociais, assustam mesmo que em quantidades menores ao apresentado pelo filme. Para quem não lembra, tais criaturas ameaçaram devastar parte de nosso território com uma nuvem oriunda da Argentina, fora os casos cobertos pela mídia desde então, a maioria sobre surtos de quantidades volumosas dos insetos de espécies diversas, a devastar lavouras e competir comida com gados e afins, tudo isso, por causa dos picos de seca e ondas de calor cada vez mais frequentes em nossa estrutura planetária desregulada pela ação nociva da humanidade e suas demandas evolutivas.

Antes de ser lançado na plataforma Netflix, A Nuvem correu alguns festivais e lançamentos em outros serviços de streaming e geralmente foi bem recebido pelo público e crítica. Alguns apontamentos diziam que os produtores fizeram com os gafanhotos o que Alfred Hitchcock fez com os pássaros no clássico que também integra o esquema narrativo do subgênero em questão. As impressões, coerentes e nada exageradas, expõe o que de fato há na estrutura dramática do filme, isto é, os bichos a ocupar um lugar ameaçador, mas representativo do comportamento humano, alegorizado por meio da bravura dos seres da natureza selvagem. Ademais, diferente do que geralmente se espera em produções do tipo, os insetos não escapam do viveiro e saem, como num slasher, matando as pessoas e deixando uma trilha de cadáveres e sangue. Há, sim, mortes e alguma histeria, mas a narrativa se mantém um tanto comedida e apesar de não ser sutil nos momentos de maior tensão, trafega por uma via mais psicológica e com menor nível de tensão física, algo que a torna interessante, mas um pouquinho letárgica.

Com direção de fotografia muito eficiente de Romain Carcanade, A Nuvem é bastante assertivo quando precisa apresentar momentos de tensão mais abertos, da mesma forma que consegue delinear os conflitos mais intensos quando a câmera fecha os seus quadros e destacam a expressividades dos principais personagens diante de momentos de puro horror, poucos, mas quando presentes, funcionais. Para uma narrativa deste segmento, os efeitos visuais, especiais e sonoros são essenciais para que os elementos dramáticos dispostos no roteiro ganhem projeção quando transformados em narrativa audiovisual. A maquiagem também funciona, aqui, sob a responsabilidade de Pierre Olivier Persin, assertivo ao trazer horror gráfico ao filme, mas sem recorrer aos excessos que tirariam a sutileza psicológica da trama. Alexandre Hecker, Olivier Zenenski e David Danesi, respectivamente, supervisores dos setores de efeitos especiais, visuais e design de som, juntos, cumprem uma grata e angustiante missão cinematográfica, complementada pela simples, mas correta, textura percussiva de Vincent Cahay, compositor da trilha sonora desta produção inteligente e assustadora.

Diferente do que se faz habitualmente no horror ecológico, A Nuvem resgata elementos básicos do subgênero para construir uma narrativa com características próximas, num resultado satisfatório, ainda que um pouco menos empolgante do que poderia ser caso diminuíssem um tanto de sua medição total, afinal, para o que está proposto, dez minutos a menos não fariam muita diferença, tampouco prejudicariam a tese dos criadores desta história atual sobre o nosso relacionamento nada cuidadoso com a natureza.

A Nuvem (The Swarm) — França, 2020.
Direção: Just Philippot
Roteiro: Jerome Genevray, Franck Victor
Elenco: Suliane Brahim, Raphael Romand, Marie Narbonne, Stéphan Castang, Victor Bonnel, Christian Bouillette
Duração: 100 min.

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