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Crítica | A Orgia dos Duendes, de Bernardo Guimarães

"Festa estranha, com gente esquisita".

por Luiz Santiago
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Uma parte da produção poética do escritor mineiro Bernardo Joaquim da Silva Guimarães é considerada erótico-cômica e também satírica, com vemos em poemas muito famosos nesse contexto, como O Elixir do Pajé e A Origem do Mênstruo. Essa comicidade do autor também se aliava a produções com um caráter grotesco, onde ele procurava harmonizar um lado sombrio, nojento e até mesmo violento e desprezível de nossa realidade (ou de “outro mundo“, mas manifestado em nossa realidade) a situações que trouxessem algum tipo de riso, mesmo o riso nervoso, apreensivo, sacana e cúmplice do leitor, como acontece neste fantástico poema A Orgia dos Duendes, publicado na coletânea Poesias, de 1865, que saiu originalmente pela Livraria B.L. Garnier.

O que o autor nos revela aqui é a realização de um sabbat (também grafado como sabbath ou “sabá das bruxas”), só que não um sabbat no sentido original, ou seja, a celebração de indivíduos pagãos para a vida em toda a sua extensão, com destaque para a Mãe Terra (natureza), onde, através da dança, de cânticos, bebidas e farta comida honram os seus deuses, especialmente aqueles ligados à fertilidade. O que vemos neste poema é a versão do sabbat que se tornou historicamente popular no final da Idade Média e começo da Idade Moderna, principalmente com o estabelecimento dos Tribunais da Santa Inquisição e os julgamentos “por práticas de bruxaria”.

Foi nesse período que a igreja católica colocou o último prego no caixão do que ainda restava das tradições antigas ligadas às celebrações das forças divinas das estações do ano, com destaque para a primavera e o verão (principalmente de tradição celta, mas no pacote entrou toda a sorte de paganismo europeu ou trazido para a Europa por outros povos), e então os sabbats ganharam a figuração que conhecemos nos documentos ou representações artísticas até hoje. A fim de causar medo, igreja criou essa imagem de que bruxos e bruxas reuniam-se para dançar (normalmente pelados) e invocar demônios, em festas regadas a muita bebida, muita comida, orgias e sacrifícios de animais e até de seres humanos. 

Nesse apagamento e reescrita de tradições feitos pela igreja, os sabbts tornaram-se sinônimo de Missa Negra (também conhecido como “sabbat negro”), ritual simbólico e satírico do satanismo que reencena uma típica Missa Tridentina, uma celebração da morte de Cristo sem a ressurreição; além dos elementos referenciais invertidos em relação ao rito cristão, claro. Pois bem, é essa tradição que vemos o nosso poeta explorar em sua Orgia dos Duendes, um poema de caráter gótico e épico que dramatiza o encontro de criaturas diversas do imaginário mitológico europeu com criaturas do folclore brasileiro, o que dá uma força e uma aparência toda especial ao poema.   

Em rimas simétricas, as várias partes do poema (que contam com números diferentes de estrofes e organização narrativa não muito fixa) expõem do início ao fim a realização dessa festa de horrores, terminando com uma tirada cínica do autor, ao colocar uma jovem virgem “cismando de amores” passeando pelo mesmo lugar onde, alguns minutos antes, uma orgia grotesca acontecia. Tudo começa com uma ótima apresentação do espaço da floresta onde o sabbat irá acontecer. A capacidade do poeta em misturar ações dos personagens e elementos do local da ação é imensa, e colocada de maneira arrebatadora, como nessa estrofe que, em apenas 4 versos, condensa muitas informações e sensações:

Vento sul sobiou na cumbuca, 

Galo-Preto na cinza espojou; 

Por três vezes zumbiu a mutuca, 

No cupim o macuco piou.

Na segunda e na terceira partes nós vemos os personagens chegarem ao local da orgia, cada um contando um pouco de sua história e o ambiente reagindo de alguma forma a esta chegada de cada um. Os convidados são diversos. Estão presentes o lobisomem, as três bruxas, o galo-preto, sapo-inchado, o crocodilo, os duendes, os diabos e capetinhas, um sapo papudo e, por fim, a Mula Sem Cabeça. Gosto muito das descrições de ações antes das histórias particulares (nem todas são interessantes – embora nenhuma delas seja ruim! – e a qualidade da poesia, nessas estrofes, não é tão alta quanto a da primeira e da segunda parte), com destaque para o que as três bruxas (todas com nomes de origem indígena) fazem no ritual. Vejam o elemento de violência e canibalismo exposto na magia da primeira e terceira bruxas (Taturana e Mamangava) e os elementos hoje típicos de narrativas de bruxaria no preparo da poção da segunda (Getirana):

Taturana, uma bruxa amarela,

Resmungando com ar carrancudo,

Se ocupava em frigir na panela

Um menino com tripas e tudo.

Getirana com todo o sossego

A caldeira da sopa adubava

Com o sangue de um velho morcego,

Que ali mesmo co’as unhas sangrava.

Mamangava frigia nas banhas

Que tirou do cachaço de um frade

Adubado com pernas de aranha,

Fresco lombo de um frei dom abade.

Apenas a Morte tem o poder de dispersar essas criaturas em uma reunião com esse nível de horror, e é justamente o que ocorre ao final do poema. Eu achei muito inteligente a escolha do autor ao utilizar a Morte como uma entidade que não é maligna e que, aliás, força uma hora terrível a sair do mundo dos homens, dando espaço para que a natureza volte a respirar, longe a folia maligna, e que meninas virgens e distraídas possam ruminar suas paixões por entre as árvores e o canto dos pássaros. Em A Orgia dos Duendes existe uma tonalidade ácida que gera o riso e, ao mesmo tempo, impõe o terror. É um poema dos primórdios de nossa literatura de fantasia, muito bem temperado com a atmosfera do terror gótico do século XIX. Imperdível, sob diversos aspectos! 

A Orgia dos duendes (Brasil, 1865)
Autor: Bernardo Guimarães
Publicação original: Poesias (coletânea)
Editora original: Livraria B.L. Garnier
Edição lida para esta crítica: EX! Editora (2016)
Prefácio: Samuel Cardeal
Revisão e Notas: Alec Silva
51 páginas

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