Home QuadrinhosOne-Shot Crítica | A Origem do Mundo: Uma História Cultural da Vagina ou a Vulva vs. o Patriarcado

Crítica | A Origem do Mundo: Uma História Cultural da Vagina ou a Vulva vs. o Patriarcado

por Gorete Frazão
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Abordar temas fundamentais ao universo feminino nunca foi tão relevante como no momento em que vivemos. Parto dessa percepção para apresentar uma obra essencial sobre esse universo. Não é um tema fundamental para jovens, mas sim para qualquer mulher que busca conhecimento sobre si e seu próprio corpo. É com esse intuito que vamos conhecer a obra da autora sueca Liv Strömquist: A Origem do Mundo – Uma História Cultural da Vagina ou A Vulva vs. O Patriarcado, com um texto repleto de informações que se contrapõem a uma construção de saberes elaborados por homens ao longo  dos períodos estruturantes da nossa história. Esta obra vem repleta de humor e clareza sobre o empoderamento feminino, oriundo do autoconhecimento, e apresentando espaço para desconstrução de informações e sabes sobre o corpo da mulher.

Observamos inicialmente o interesse demasiadamente masculino sobre a genitália feminina. No quadrinho, teremos alguns personagens, de diversas áreas do conhecimento, liderando o debate sobre o corpo e órgão sexual da mulher. Temos o clitóris como grande objeto de alucinação e controle, onde procedimentos são feitos para controlar comportamentos femininos como depressão, histeria, dor de cabeça, perda de apetite e desobediência. Tais procedimentos, na visão desse grupo de estudiosos, não teria nenhum problema desde que fossem autorizados pelos maridos. A maneira como são abordadas essas personalidades nos dá um panorama da arte que será utilizada para construir o caminho de total fascinação em torno da genitália feminina. Acompanhamos e nos inserimos como mulheres nessa aventura de descoberta e aprendizagem, e essa percepção nos é dada pela personagem que vai narrar todo o percurso formativo e artístico do volume. Isso nos é posto por um traço firme, marcante e delicado nos desenhos. Nesse trajeto, a ausência de uma paleta de cores também reforça a complexidade da temática abordada.

Também são notados os aspectos de transformações estruturais da cultura Ocidental em torno do pecado original, criando uma visão para as relações sexuais, deixando claro que o corpo feminino é sujo e fedorento. Nesse momento é que fazemos uma viagem pelas diferentes fontes históricas para acompanhar toda essa transformação, encaminhando-nos para um apagamento das celebrações e tradições culturais onde o corpo feminino era cultuado. Essa percepção vem através de esculturas e gravuras dos períodos onde a feminilidade era digna de festas e representações. O recurso artístico da HQ permeia um belo curso de ‘história da arte’, mostrando a vulva como sinônimo de apreço e liberdade.

Os aspectos de controle são ampliados com a difusão da oposição dos sexos na sociedade, e ‘viva o sistema binário’! Nesse momento, experimentamos a insanidade que se consolidou ao longo do tempo em discursos bem conhecidos hoje. O desconhecimento sobre o corpo feminino foi tamanho, que desembocou na caça às bruxas, realizada na Idade Média, onde até as mamas eram consideradas sinônimo de bruxaria… um padrãozinho complicado! O interesse sobre a genitália era obsessivo. Para exemplificar essa questão, falaremos de uma personagem que causou controvérsia: a sul-africana Saartjie Baartman, que foi comprada no século XIX pelo médico Alexander Dunlop e levada a Londres. Ela foi exposta por ter um corpo “fora do padrão” conhecido na época, como sua bunda e seu órgão genital. Esse aspecto acompanha as teorias sobre o que chamamos de racismo científico, bem conhecido no continente europeu. E o corpo de Baartman só foi repatriado em 2002, 187 anos após sua morte.

O grande interesse masculino foi se consolidando no conhecimento sobre a genitália e corpo femininos, estruturando um conhecimento científico sobre as mulheres. Somente em 1998 é que começamos a conhecer o clitóris e a extensão da vagina. Dessa forma, tudo que se refere à sexualidade feminina esteve ligado ao conhecimento do corpo e sexualidade masculinas. Essa construção se concentra em nos relegar algumas posições (que historicamente desempenhamos em versões que foram ampliadas pela tradição religiosa), ignorando que fomos tratadas como seres inferiores, e depois como histéricas. A ordem era que deveríamos ter o nosso prazer controlado, num corpo que não conhecíamos até então. Esse corpo e seu funcionamento estavam direcionado a uma única visão. Falar sobre as etapas históricas nessa obra é tão libertador, que vamos ficando cada vez mais instigadas, e mergulhamos livremente no enredo.

Neste mergulho, nos deparamos com a construção da culpa e vergonha que sentimos sobre nossos corpos, nossa sexualidade, o peso do pecado que carregamos na tradição religiosa ocidental. Adão e Eva são as personagens centrais desta tradição e do papel secundário relegado ao nosso corpo. Sentimos culpa por ser quem somos e pela maneira de funcionamento do nosso corpo. Esse é o único momento da trajetória em que as páginas da HQ ganham cores. Cores vibrantes, que irão compor a representatividade artística. Considerei que o uso dessas cores, neste momento, não ‘apagou’ críticas e chamados de atenção da autora para importantes descobertas científicas, mas foi um recurso muito bem destacado e utilizado para engrandecer o momento.

O roteiro segue abordando a dificuldade de falar sobre clitóris, vulva, vagina, masturbação, menstruação. Em sociedade, por padrão, a mulher não tem intimidade para falar e celebrar seu sexo. Nem lida muito bem com tradições e celebrações que foram apagadas por uma alucinação masculina e disseminação de informações que resultaram no desaparecimento da liberdade dos corpos e do sexo. Essas manifestações passadas, de louvor à mulher, são encontradas na forma de esculturas desde os tempos mais remotos da existência humana. Nesses períodos, as mulheres eram livres para conhecer e celebrar seus corpos. Hoje, precisamos disseminar o conhecimento sobre a feminilidade, para que possamos abordar livremente temas de suma importância para nossa construção como seres sociais.

Precisamos falar não só sobre nossos corpos, sexualidade, gênero, mas de tudo que tange o ‘ser mulher’. Nesse momento da discussão no quadrinho, acompanhamos uma sequência relevante, bem humorada e interessante sobre menstruação e o tabu que lhe acompanha. Nos deparamos com uma abordagem que nos leva a uma reflexão instigante: de como sentimos vergonha do ciclo menstrual. Ele está envolto em uma aura de insegurança; medo de tratá-lo como algo natural nas mulheres e comum no convívio social. Estamos mais uma vez sob a égide da vergonha imposta por uma tradição religiosa que nos macula em seus textos. Segundo essa linha histórica, os fluxos menstruais têm poderes destrutivos, são usados na produção de feitiços, poções do amor…

Aqui, temos mais uma vez o medo e a necessidade de estabelecer padrões sobre nossos corpos. O nojo que paira sobre a menstruação e como temos que esconder esse período mensal de nossas vidas ainda está presente hoje. Escondemos algo que é natural, nos preocupamos que não saibam disso e precisamos de absorventes que tragam frescor a esse período. O que me deixou bem pensativa nessa questão é que o frescor venha do consumo de absorventes e não pensamos o quão esse produto é poluente e agride o meio ambiente.

Reproduzimos um tabu, em nossa cultura, em nossas vidas e nossas relações. Não nos preocupamos e não debatemos o apagamento da arte onde eram celebrados corpos femininos e muito menos debatemos a fascinação masculina em controlar e produzir pautas sobre mulheres. Esse é o tema central desse quadrinho, com uma arte marcante e com traços simples, mas recheado de informações, dados científicos, e muita ironia que se faz necessária. Sua abordagem é capaz de construir um panorama sobre o exercício do patriarcado ao longo de diversos períodos da história. Desconstruir esses padrões é algo fundamental para a nossa libertação (e a de nossos corpos), pauta que precisa ser difundida como ferramenta de debate e de educação.

A Origem do Mundo: Uma História Cultural da Vagina ou a Vulva vs. o Patriarcado (Kunskapens Frukt) — Suécia, 2014
Roteiro: Liv Strömquist
Arte: Liv Strömquist
No Brasil: Quadrinhos na Cia (Companhia das Letras)
134 páginas

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