Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | A Origem dos Guardiões

Crítica | A Origem dos Guardiões

Revivendo a magia da infância.

por Luiz Santiago
2,2K views

Todas as culturas do mundo, em todas as épocas históricas, tiveram os seus personagens de faz-de-conta; criaturas do bem e do mal cujo propósito moral e social era ensinar, amedrontar ou trazer diferentes sentimentos para as crianças e até mesmo para a população adulta. Lendas do folclore ou episódios das mitologias de diferentes povos foram se desenvolvendo até o ponto de gerarem criaturas que eram responsáveis por certos aspectos da vida humana ou por fenômenos da natureza. Foi de olho nessas histórias que o ilustrador e escritor norte-americano William Joyce concebeu, em 2005, a trama de um filme que pegaria protagonistas desses contos de fadas ou das histórias de “representação de fenômenos ou eventos“. Esta obra deveria sair pela Aimesworth Amusements, mas não foi possível. O autor então vendeu os direitos para a DreamWorks três anos depois, e foi nessa casa que o projeto saiu do papel.

Com base na ideia original, Joyce começou a escrever a série Guardians of Childhood (literalmente, Guardiões da Infância). O primeiro livro (Nicolau São Norte e a Batalha Contra o Rei dos Pesadelos) foi publicado em 2011, um ano antes do lançamento do filme, que é assinado por Peter Ramsey, em sua estreia na direção de um longa-metragem. Já nesse momento, o autor tinha a ideia de ambientar a série antes dos eventos da película, que se passa 300 anos depois, datação que vemos exibida na tela, na cena de abertura. Já o segundo livro (Coelhoberto Pascoal e os Ovos Guerreiros no Centro da Terra) e também o terceiro (Dentiana: Rainha do Exército das Fadas dos Dentes), tiveram o seu lançamento no ano de estreia do filme, servindo como um reforço para as histórias desses personagens, explicando as suas verdadeiras origens, primeiras batalhas e dando detalhes sobre suas personalidades e poderes.

No filme, o roteiro de David Lindsay-Abaire — observado de perto por Joyce, que esteve bastante envolvido no início da produção e seria até codiretor da fita, mas acabou se afastando após o falecimento de sua filha de 18 anos, vítima de um tumor cerebral. Aliás, é a ela que o filme é dedicado, como vemos na cartela que aparece logo após a última cena — se propõe a mostrar de forma divertida como cada Guardião é importante para manter viva a imaginação das crianças e o que realmente faz com que eles tenham os poderes que têm. Como nem a ideia dos personagens e nem o conceito de que esses seres precisam ser acreditados para que possam ser vistos são próprias do autor, o espectador está diante de clichês bonitinhos da literatura e do cinema para o público infantil, mas dessa vez o que é apresentado é visualmente e tematicamente bem interessante.

Jack Frost (Chris Pine) é o personagem que acaba assumindo o protagonismo porque é o novo Guardião escolhido pelo Homem na Lua, e como não tem memórias de sua vida passada — ou seja, como se tornou quem ele é, o espírito do inverno –, o filme é essencialmente a sua jornada de aprendizado da vida, entendimento de si mesmo e amadurecimento como pessoa. Essa sua jornada acontece paralelamente a uma mudança que o mundo das histórias está para sofrer: Breu/Bicho-Papão (Jude Law), conseguiu sair de sua prisão e agora tem como missão vingar-se dos que o prenderam e, claro, instaurar uma nova era de medo no mundo. O uso que o texto faz das motivações aqui funciona muito melhor para os mocinhos do que para o vilão, que acaba sendo bem mais interessante visualmente do que tematicamente.

Completando o time dos Seres essenciais para o imaginário infantil (e por consequência, também adulto) temos o Papai Noel (Alec Baldwin) — representado como um eslavo bonachão –; o Coelho da Páscoa/Coelhão (Hugh Jackman) — representado como um aventureiro, do tipo Crocodilo Dundee –; a Fada do Dente (Isla Fisher) — representada como uma irmã mais velha que se encanta fácil pelas coisas — e finalmente o melhor de todos os Guardiões, Sandman/João Pestana, que já ganha pontos porque é um personagem que não se expressa por palavras, apenas por gestos e símbolos criados através de sua areinha mágica, com a qual ele coloca as crianças para dormir e sonhar. Todos esses personagens recebem um bom cuidado do texto. Mesmo quando não aparecem em cena, há uma justificativa plausível para a ausência e sua reintegração é feita de forma orgânica e interessante, de modo que nenhum deles parece “sobrar” na história.

O filme conta com efeitos notáveis, onde se destaca a representação de Sandman, com sua cor dourada e todos os sonhos feitos de sua areia mágica. Por tabela, também é preciso citar a representação dos cavalos e dos poderes manipulativos de Breu, simplesmente porque ele roubou de um sonho a matéria-prima para conseguir criar os seus pesadelos e medos. O trabalho de cores e criação de Universo em toda a obra também é exemplar. Mesmo o mais chato dos espectadores, que pode apontar “semelhanças demais” na estrutura dos castelos de Breu, Fada do Dente e Papai Noel, deverá admitir que cada um desses espaços possui identidade visual própria, tanto externa quanto internamente. E isso também vale para a escolha da paleta de cores de cada localidade (somando aí o Universo-Toca do Coelho da Páscoa e qualquer lugar com neve, que é o ambiente de Jack Frost) e para as temáticas musicais que Alexandre Desplat compôs para cada lugar, trazendo diferentes sensações para o público também nesse aspecto.

O texto de Lindsay-Abaire só não consegue crescer muito com o vilão. Breu é um antagonista simples: ele é o “monstro debaixo da cama” que muitas crianças temem. O Bicho-Papão. Mas enquanto os Guardiões são tratados com uma boa linha de abordagem pessoal, com exploração de suas características emotivas, aquilo que eles representam, em essência, para as crianças, Breu é simplesmente “o malvadão” da parada. “Não é como se o público não entendesse isso, ou precisasse de uma grande explicação para o que o Bicho-Papão representa”; alguém até pode argumentar. Mas a mesma coisa pode ser dita de Papai Noel, Coelho da Páscoa e Fada do Dente. E ainda assim, eles recebem toda a atenção do roteiro em termos de construção. Esse aspecto maniqueísta impede que o filme acompanhe o crescimento qualitativo que promete, levando em consideração apenas os Guardiões. E que bom que eles são a estrela do filme, afinal é uma obra sobre eles, não é mesmo? Todavia, isso não significa que o inimigo precisava ser raso.

A criação do “espírito do inverno” é outra coisa que me encuca, nessa obra. Da primeira vez que a vi, eu simplesmente “odiei” o fato de Jack Frost ser um avatar humano criado para representar o inverno num mundo que já tinha inverno! Dessa segunda vez, eu fiz as pazes com essa abordagem e subtendi que o Homem da Lua, até aquele momento, não precisava de um representante para o inverno. Depois de uma certa tragédia tragédia, algo pode ter fraturado o equilíbrio desses Seres na Terra e um novo “espírito” foi necessário. Porém, não deixa de ser estranha essa escolha, especialmente quando o filme tem oportunidades de sobra para indicar se havia ou não outro avatar, ou mesmo criar uma história que tivesse um pouquinho mais de raízes para Jack Frost. Quanto aos outros Guardiões, não há nenhum problema de concepção em relação a eles, primeiro e principalmente porque ou não são humanos ou, no caso do Papai Noel, são Seres imensamente conhecidos e facilmente concebíveis levando em conta aquilo que o filme propõe.

Crianças são incríveis máquinas de felicidade, esperança, aprendizado e crenças em coisas maravilhosas, um lado da vida que os anos simplesmente diminuem ou, em alguns casos, até apagam nos adultos. Um filme como A Origem dos Guardiões é uma representação bela e divertida desses sonhos, medos e esperança que Seres do folclore e das mitologias ainda sustentam, mesmo em nosso mundo moderno. É um filme sobre acreditar em coisas boas, admitir e rejeitar o medo em coisas banais. Pelo tema e pelo carinho que a maioria do público tem pela obra, é até impressionante que não tenha vingado como franquia, já que Hollywood não gosta de perder a onda de obras como essas. Por outro lado, é até bom que seja um Universo tocado apenas uma vez pelo menos até agora. A magia que ele representa é grande o bastante para nos manter encantados em definitivo.

A Origem dos Guardiões (Rise of the Guardians) — EUA, 2012
Direção: Peter Ramsey
Roteiro: David Lindsay-Abaire (baseado na obra Guardians of Childhood, de William Joyce)
Elenco (vozes): Chris Pine, Alec Baldwin, Jude Law, Isla Fisher, Hugh Jackman, Dakota Goyo, Khamani Griffin, Kamil McFadden, Georgie Grieve, Emily Nordwind, Jacob Bertrand, Olivia Mattingly, Dominique Grund, Ryan Crego, April Lawrence, Isabella Blake-Thomas, Stuart Allan, Rich Dietl, Jessica Belkin
Duração: 97 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais