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Crítica | A Passageira

por Marcelo Sobrinho
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Uma das funções essenciais do cinema, uma forma de arte que cresce no âmago sociocultural do século XX, sempre foi fazer filmes com e sobre política. Na América Latina, uma produção com essa orientação ganhou força após os anos 60, com o surgimento do chamado Novo Cinema Latino-Americano. A partir de então, diversos países sul-americanos produziram bons filmes sobre política e, especialmente, sobre as ditaduras que aqui se instalaram, como o argentino A História Oficial, o chileno Machuca e o brasileiro O Ano Que Meus Pais Saíram de Férias. Mas pouco se conhece do olhar do cinema sobre a ditadura Fujimori, no Peru. A Passageira, drama peruano de 2015 e que chegou aos cinemas brasileiros em setembro de 2016, é uma grata surpresa nesse contexto, não só pela originalidade do tema como pela abordagem encorpada que realiza.

O longa-metragem reúne personagens que trazem consigo as dores da violência sofrida, mas também daquela praticada. A trama gira em torno da história de Celina, uma jovem camponesa que havia sido violentada por um coronel da ditadura ao longo de anos, com a ajuda de seus comandados. Um deles, Magallanes, tornou-se taxista depois dos violentos anos de guerra, vivendo uma vida pacata e comum. Em um golpe do destino, o antigo soldado reencontra a jovem como sua passageira, 25 anos depois dos acontecimentos que marcaram para sempre a vida de ambos. Ele a reconhece imediatamente, mas ela não. Inicia-se uma poderosa catarse para Magallanes e, a partir desse momento, sua trajetória seguirá rumo à expiação de sua culpa e à reconciliação com as manchas de seu passado.

Decidido a ajudar Celina, que descobre ter se tornado mãe, o taxista passa a segui-la e envolve-se em um perigoso jogo de chantagens e extorsões, em busca de dinheiro para ajudar a jovem. As interpretações dos atores que vivem os protagonistas de A Passageira são extremamente seguras. O mexicano Damián Alcázar e a peruana Magaly Solier conseguem manter com maestria o fio condutor de uma história muito dura de assistir. A personagem de Solier é uma mulher terrivelmente ferida, mas que revela também uma ternura que a violência não foi capaz de eliminar. Alcázar não é menos convincente, dando vida a um homem complexo, que desperta ojeriza por seu passado, compaixão pela dor que sente e admiração pela determinação em reparar o mal que ajudou a provocar. Não há lugar para obviedades ou dicotomias fáceis na construção dos protagonistas do filme de Salvador del Solar.

A cena mais linda de todo o filme, em minha opinião, é aquela em que Magallanes vai à barbearia de Celina para que ela lhe corte os cabelos e lhe faça a barba. O cuidado com que o diretor peruano utiliza o close-up e o plano detalhe, para extrair as mínimas sutilezas desse momento, já valeria a sessão. Magallanes revela assim sua identidade para Celina e seu ato é de um homem com imensa coragem e humildade diante de sua vítima de outrora. Ele, que vivera até ali protegendo a si mesmo de seu passado doloroso, agora recusa as antigas proteções e se desfaz delas, desfazendo-se simbolicamente de sua barba e de seus cabelos. Ele coloca-se diante de Celina sem salvaguardas e pede seu perdão.

Outro grande momento é aquele em que Celina faz um longo discurso de revolta contra seus antigos algozes. A moça discursa em quíchua, seu idioma nativo. Propositalmente, não há qualquer legenda nessa cena, mas é possível entender toda a dor que expressa. O que há de mais interessante é o fato de se criar uma dualidade: ao mesmo tempo em que a personagem escolhe o idioma que é o seu, para falar de dores que são tão suas, o espectador é capaz de sentir a dor empregada a cada palavra e o tormento passa a ser também seu. Isso mostra que a história de Celina não é só dela ou dos peruanos, mas também de tantas pessoas vitimadas por toda forma de violência mundo afora. Quando a antiga camponesa discursa com tamanha bravura, em sua voz ecoam, na verdade, milhões de outras vozes.

Outro grande acerto do filme é tratar de toda a complexidade com que operam regimes tão nefastos e virulentos como a ditadura Fujimori. Toda a rede de intrigas que é criada, com participação de tantas pessoas e servindo a tantos interesses, só reafirma o valor da democracia. Apesar de todos os seus problemas, ela ainda é capaz de garantir alguma transparência e assegurar algum respeito a valores humanos fundamentais. As ditaduras não permitem que a sujidade apareça e seja combatida, ficando fadada ao oblívio. Não à toa, o mesmo coronel que abusara de Celina agora sofre de Alzheimer. O roteiro, também assinado por Salvador del Solar, é muito astuto ao introduzir esse elemento.

A Passageira é uma ótima oportunidade para conhecer o cinema peruano. Com ótimas interpretações, um roteiro que não deixa grandes problemas a resolver e uma direção bastante competente, o filme traz um grande frescor ao tema das ditaduras latino-americanas no cinema. A história de Magallanes e Celina reafirma a importância de não esquecermos nosso passado, pois o mal e a impunidade continuam como chagas permanentes em nossa história. O filme deixa um nó na garganta, mas não nos rouba toda a esperança.

Cito o escritor peruano Mario Vargas Llosa, que, em seu romance Lituma nos Andes, cria uma bela imagem para um povo tão maltratado pela violência. O cabo Lituma, após presenciar a barbárie que devastou o Peru durante o conflito entre as forças oficiais e o Sendero Luminoso, depara-se com a uma bela paisagem noturna, que lhe devolve a possibilidade de contemplar com esperança o futuro de seu país: “Sentiu uma lufada de vento gelado e, apesar de seu aturdimento, viu que a esplêndida meia-lua e as estrelas iluminavam, num céu sem nuvens, os agudos picos dos Andes”. Uma metáfora de vida, bem no centro da destruição.

A Passageira (Magallanes) — Peru, 2015
Direção: Salvador del Solar
Roteiro: Salvador del Solar
Elenco: Damián Alcázar, Magaly Solier, Federico Luppi, Christian Meier, Bruno Odar
Duração: 109 min

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